ARTIGO

Foi bonita a festa, Pá!

Por David Chagas | 02/05/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Quando este Buarque de Hollanda, ganhador do prêmio Camões, cantando, soube esparramar engenho e arte, passou a iluminar toda uma geração. Por sorte, a minha. Desentendo quem não seja capaz de reconhecer tamanho brilho. Ofendo-me quando, a seu respeito, se valem de desditos, de mensagens que não ouso repetir. Bem sei que seu talento e dons são inegáveis e seus feitos notáveis merecem gratidão eterna.

Na adolescência, cheguei a acreditar, ouvindo uma de suas canções, que traria de volta quem, bem-vinda à vida, se despedira, causando tristeza e dor. Nos longes dos sessenta, a vida era a estrada que se desenhava ao pé do tempo e Chico, nas canções escritas, insistia em sentir-se dono do abandono e da tristeza, clamando por Benvinda, a sua, assim como eu, pela minha.

Benvinda, Benvinda, Benvinda, a que bom que você veio... dizia ele.

Os sentimentos de tristeza e mágoa eram distintos, mas o clamor era o mesmo. Ele, pouco mais velho que eu, chorava a amada distante. Eu, adolescente ainda, pensava em minha mãe, precocemente morta.

 Bom seria que Benvinda, esta ou aquela, voltasse, já que o luar chamando, os jardins, florindo e o lugar, à mesa, vazio.

 O eu-profundo me fez acreditar, embora fossem diferentes personagens, em iguais sentimentos de abandono, tristeza e dor.

Agora, em Lisboa, vejo-o receber, das mãos de dois presidentes, prêmio que o consagra definitivamente entre os que fizeram, como ensinou Saramago, das línguas em português, vida!

Neste abril, revolucionário para os portugueses, Chico, por seus feitos e por sua arte, merece saber quanto“foi bonita a festa, pá! / Fiquei contente / E ainda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”.

Trago, comigo, muitos cravos. Também sementes dos caminhos da Liberdade, na longa marcha pela Avenida lisboeta e das que Chico Buarque semeou em meu espírito jovem.

Lá, sem baionetas e fuzis, a pátria-mãe soube fazer o que, muitos de nós não aprendemos: afastar para sempre o peso das botas, de coturnos pesados, de ódio fratricida, para, por onde passarmos, ver brotar a esperança em paz, convívio fraterno, união.

Em meio a esta festa, pá, reverbera resplandece esquecida “uma semente / em algum canto de jardim”.

Ao entregar o merecido prêmio, o presidente de Portugal valeu-se de comparação entre o Everest, Bob Dylan e Chico Buarque. Grandes todos os três. Geniais ambos. O Everest não precisa de medalhas nem de condecorações. Todos sabemos ser o mais alto do mundo. Eles também. Estes, no entanto, revelam no seu feito a genialidade de seu canto, de sua obra, de seu trabalho.

Por isso, Chico, agora, merece a festa que teve. Diz o presidente que o brasileiro Francisco, o cidadão, o filho de Maria Amélia e Sérgio Buarque de Hollanda, é parte integrante do patrimônio comum de Brasil e Portugal num patamar, afirma, em que muitos poucos se lhe comparam. Cita sua obra como escritor, como dramaturgo, como compositor e poeta. E se demora mais falando do cancioneiro Chico Buarque.

Há, espero que se lembrem, ao menos os que foram meus alunos um dia, importante sinal de respeito com Piracicaba, demonstrado pelo genial premiado. No final dos setenta, quando deixei São Paulo para dar aulas no CLQ, depois de frequentar cursos na Universidade de São Paulo, devotado ao exercício do magistério como soube reconhecer um dia, tratei de criar mecanismos que dessem à Escola características que permitissem aos alunos, no futuro, entender quanto o ambiente escolar responderia por sua formação integral.

Sinto hoje, de muitos e, principalmente de seu país, quanto reconhecem isto. E sou grato à Escola por permitir-me este trabalho.

Criei, então, um grupo de teatro experimental. Fundei um jornal escolar, como poucos, em escola, chamado Palavra. Dele participaram ao lado dos alunos, Renata Palottini, Carlos Drummond, o maior poeta do século XX, Paulo Bonfim, Lygia Fagundes Telles e Chico Buarque, hoje, Prêmio Camões de Literatura.

Dona Maria Amélia, mãe de Chico, com quem falei, pôs-se de permeio junto ao filho famoso e conseguiu dele matéria para o jornal escolar. Publicou-se, em primeiríssima mão, um dos poemas que, mais tarde, musicado por ele, fez parte do espetáculo Ópera do Malandro.

Entusiasmou-se o compositor ao saber da encenação, pelo teatro da escola, de Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, valendo-se do apoio de algumas de suas canções.

Chico foi e segue o grande responsável por dias de esperança e luz. Há quem tente, de algum modo, roubar dele a luz que irradia. Bem disse o presidente português: todos temos detratores, em especial, os que brilham em primeira grandeza. Chico, no entanto, não permite que ofusque sua luz, tendo sido claro, claríssimo, tanto na ditadura quanto na democracia e nos obscuros dias dos últimos quatro anos.

Não sem esforço e luta, fez armar um novo dia ensinando a ver, no horizonte, por mais distante, os raios de esperança.

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