ARTIGO

Inveja, intriga e traição no Reino da Bicholândia

Por Armando Alexandre dos Santos | 24/04/2023 | Tempo de leitura: 5 min

A utilização de animais em composições literárias que tratam das qualidades e dos vícios humanos é antiquíssima. Quase se diria que é antropológica, pois em todas as culturas, dos mais diversos povos, sempre houve a tendência de ver, nos animais, simbolizadas e bem expressas paixões humanas. Ideias de coragem, astúcia, e fidelidade são quase imediatamente associadas às imagens do leão, da raposa ou do cão. A candura de um cordeiro, a imundície de um porco, a rapacidade de uma ratazana, tudo isso o ser humano é levado a associar a qualidades ou vícios da nossa espécie. Daí a presença de tantos e tantos animais “humanizados” nas composições literárias de todos os tempos, desde o fabulário esopiano da velha Grécia, até (para pegarmos um exemplo bem mais recente), a genial sátira do regime comunista soviético “Animal Farm”, de George Orwell, publicada no Brasil com o título “A revolução dos Bichos”.

A obra de Raimundo Lúlio (1232-1316), estrela de primeira grandeza da cultura e da língua catalã, venerado como Beato na Catalunha e também nas casas mantidas por religiosos franciscanos de todo o mundo, é muito extensa e diversificada. Escreveu mais de 250 obras, em latim, catalão ou árabe, em prosa e em verso, sobre Filosofia, Teologia, Ciências e Literatura. Sua cultura era verdadeiramente universal e enciclopédica.

Lúlio conhecia bem a vida de corte, porque frequentou a de Jaime I, rei de Aragão, e foi preceptor de um dos seus filhos. Um curioso retrato da vida cortesã foi feita no opúsculo que escreveu, sob o título Llibre de les Bèsties. (RAIMUNDO LÚLIO. Livro das Bestas. Tradução de Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da UFES I. São Paulo: Escala, 2006). Trata-se de uma alegoria em que descreve a corte do rei Leão, cercado de animais que representam e simbolizam os vários tipos de cortesãos que gravitam em torno dos soberanos - sejam eles monarcas coroados, sejam apenas “enfaixados” presidentes de repúblicas. Os usos e os abusos, os costumes e os vícios, até mesmo as fórmulas de tratamento e cortesia dos palácios reais são graciosamente atribuídos aos personagens figurantes. Nem a pessoa do soberano, com suas fraquezas e quedas morais (por exemplo, o adultério com a bela Dona Leoparda, a mulher do seu leal servidor Leopardo) é poupada. Todos têm seus vícios, suas fraquezas e suas idiossincrasias expostas de modo vivo, em um texto de leitura muito agradável.

No opúsculo são narradas as consequências da inveja do Tigre em relação ao Leopardo. Foram ambos os nobres felinos despachados como embaixadores, para visitar o rei dos homens. Levavam, como presentes do rei dos animais para o seu colega humano, o Cão e o Gato, dois animais que os homens muito apreciam. Na corte humana, depois de longa espera, afinal conseguiram os mensageiros ser admitidos à presença do rei, que os recebeu de modo desigual: “Quando os mensageiros estiveram diante do rei, ele honrou mais o Leopardo que o Tigre, dirigindo-lhe um olhar mais prazeroso e fazendo-o sentar mais próximo de si que o Tigre. O Tigre teve inveja disso e ficou irado com o rei, porque acreditava que ele o devia honrar tanto ou mais que o Leopardo.” (op. cit, p. 70).

As consequências dessa inveja são expostas ao longo de vários capítulos. Enquanto estavam ausentes os dois embaixadores, Dona Raposa, que não gostava do Leopardo, insinuara-se junto ao rei Leão e lhe facilitara o acesso a Dona Leoparda. Encantado com a beleza da felina, o rei a tomou como amante, coisa que logo se espalhou nos mexericos da corte e acabou por chegar aos ouvidos do marido traído. Este, quando tomou conhecimento da traição que lhe fazia o soberano ao qual sempre servira com lealdade, indignou-se, acusou-o de traição e o desafiou para um duelo. Um rei, entretanto, somente poderia aceitar combate singular com outro rei, de modo que foi preciso que outro animal o representasse no duelo. Apresentou-se o Tigre, movido pela inveja que desde o episódio da audiência com o rei dos homens o atormentava. Fez-se o combate, o Leopardo matou o Tigre, mas ficou extenuado com o esforço da luta. Ao final, o rei, traiçoeiramente atacou o Leopardo, que já não teve forças para resistir e morreu. O Leão, porém, também se viu castigado pela vilania que cometera, pois perdeu a sabedoria e a sutileza de espírito, atributos próprios dos monarcas: “Depois de o Leão ter pecado e matado o Leopardo, não teve mais tanta sutileza nem engenho como tivera antes...” (p. 78).

Todos esses acontecimentos, narrados no mundo da alegoria, não podiam deixar de ser aplicados, no tempo em que foram escritos, a personagens reais, no duplo sentido do termo: reais porque realmente existentes e reais porque se referiam a reis de verdade.

A obra pode ter tido caráter pedagógico, como realça o texto introdutório da edição aqui utilizada, assinado por Esteve Jaulent: “Talvez a intenção inicial de Lúlio fosse escrever um manual para os príncipes, que resumisse as qualidades que o governante deve possuir, e as precauções que deve tomar, para exercer com sucesso o seu poder. As palavras com que o livro termina permitem esta suposição: Assim acaba o Livro das Bestas, que Félix levou ao Rei. A crítica concorda em que este Rei é Felipe IV da França, para que ele, olhando o que fazem os animais, visse como deve reinar e como pode guardar-se dos maus conselhos e dos homens falsos.”

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