ARTIGO

Terá sido vão o Sacrifício?

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Todo ano, as quaresmeiras, ao florir, me trazem à memória tantas lembranças. A primeira, no jardim de casa, onde, por vezes, na varanda, à frente, nos sentávamos, para ouvir estas e outras tantas histórias.

 Neste tempo, a meninice permitia acreditar que as flores surgiam na quaresma por Ele, o filho de Deus. Minha mãe jamais disse isto, mas o menino associava o despontar dos botões ao período de silêncio, recolhimento e respeito.

Demorei a saber tratar-se de planta nossa, típica da Mata Atlântica. Florir, hoje, em especial, é, realmente, manifestação importante para alimentar, no quaresmal período, a necessária transformação de hábitos do homem brasileiro que vive a fazer responsos em nome de Deus, com ações divorciadas de Seu caminho, Sua verdade e Sua Vida.

Se me ponho a ver com os olhos de agora, as Semanas Santas ao longo da vida, chego, àquela primeira, olhar terno da mãe, voz ainda mais reservada em tempo de Quaresma, elegante sempre, ensinando a que nos recolhêssemos à beira do silêncio, em honra do Menino que, crescido, sofreu padecimento inimaginável.

Prazer em causar sofrimento físico, moral, maltratar não é detalhe, é característica. A maldade humana tem, desde o surgimento do homem, a idade do tempo, que se deixou fatiar, para ser contado.

Minha mãe, palavra medida, sugeria louvar e agradecer e refletir, sobretudo refletir na desumana penitência a que o submeteram. Nenhuma palavra senão a brotada no instante carregada de gratidão, de afeto, de respeito e de carinho. Nenhuma lágrima. Ele, antes mesmo de nascer, sabia a que viria e tinha a Seu Lado, como todos temos, o Espírito da Luz. Pensar sua morte, agora, exige contrição profunda e gratidão à Sua divindade.

Aninhados sob o olhar severo da consciência, pensar no que vinha sendo, até então, a vida, pouca, naqueles anos. A cada ano, se desenhava nosso rito de semana santa. Silêncio profundo, pouca ou nenhuma música, a hora nona.

O tempo ampliou ainda mais respeito e amor a Deus. A hora a exigir-nos gratidão e reflexão profundas para o sacrifício de Jesus Cristo e o descompasso da humanidade.

Crescido, passei a fazer da igreja ponto de encontro para cerimônias religiosas. Participei ativamente, do que nos sugeria o rito segundo a liturgia imposta sem imaginar que Deus queria muito de mim e dos homens todos, sem orquestração e cena.

O domingo que antecede a vitória da morte, por recordar Cristo e sua entrada triunfal em Jerusalém, iniciava o cenário de Seu sofrimento.  A quinta-feira, com fraterno gesto, o Pão, metáfora de Seu Corpo e Sangue oferecidos. Metáfora perfeita de doação e Amor. Nova aliança que não se ajusta ainda hoje ao coração dos homens. Nas entrelinhas de Sua Palavra a evidência de que reconhecia o enorme sacrifício por que passaria.

Apesar de cumprir os cânones católicos, minha mãe sempre nos deixou livres para ler, pensar, analisar e entender. Ensinar seus filhos, como Cristo, a humanidade, o motivo de Deus fazer do Filho, perambulando entre nós, missionário perfeito, símbolo de justiça, humano, sem enfatizar jamais sua divina condição, igual a todos, vindo para o sofrimento e dor.

A Igreja, com seus tropeços, me permite ver quanto foram sábias as lições da casa, da família, permitindo-me ainda sorver o grão da semente plantada, digerida com respeito, com leal devotamento a quem ensinou, em honra da Trindade Santíssima.

Quanto meus joelhos, naquele canto da casa escolhido para pensar, na hora nona, sobre a paixão e morte de Jesus Cristo, souberam reconhecer nas marcas, Luz, real sentido da caminhada.

Pouco falar. Muito fazer. Agir. Da Palavra, a lição diária. Jamais valer-se dela para propalar, de modo fortuito e leviano, o ensinamento da fé e da esperança. Abençoar sempre, para conceder proteção, amparo, acolhimento, auxílio, amor.

Ao ver o mundo declinar, por culpa de muitos, quanto agradeço ter tido quem, pelo exemplo, revelou o caminho do bem, da verdade, afastando-nos de comportamentos dissimulados.

Na aproximação de novo tempo de reflexão em torno dos episódios que marcaram a hora da crucificação, a expectativa do instante vai além da marca do relógio. Pede reflexão para que o Espírito absorva o sofrimento de Jesus Cristo, sem lágrimas, em contrição profunda, na expectativa de paz.

Por sorte, Francisco, no comando das cerimônias universais, com sua lucidez, seu exemplo, sua coragem, seu carisma e força, confirma ser este o único caminho.

Seja o poema de Drummond, distante do que traça minha linha de pensamento, mas, em cada verso, próximo da verdade que pretendo transmitir.

No caminho onde pisou um deus / há tanto tempo / que o tempo não lembra / resta o sonho dos pés / sem peso / sem desenho.

Quem passe ali, na fração de segundo, / em deus se erige, insciente, deus faminto, / saudoso de existência.

Vai seguindo em demanda de seu rastro, / é um tremor radioso, uma opulência / de impossíveis, casulos do possível.

Mas a estrada se parte, se milparte, / a seta não aponta / a destino algum, e o traço ausente / ao homem torna homem, novamente.

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