ARTIGO

Origem dos fados, origem de um fado

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 4 min

A cultura popular portuguesa é rica e variada em todas as suas manifestações, na música, no canto, em matéria de danças, no artesanato, na culinária etc. Em matéria musical, sem dúvida a grande expressão da alma lusitana é o fado. Suas origens perdem-se na noite dos tempos. De origem árabe supõem-no alguns. De origem mais recente, pretendem outros. Há quem sustente, mesmo em Portugal, que o fado teve origem no Brasil. Conheço três ou quatro fados que procuram explicar a origem do fado, evidentemente de modo poético e figurativo.

O fato é que o fado é profundamente identificado com a alma portuguesa como ela é, com suas qualidades e (manda a verdade que se diga) também com seus defeitos ? qualidades e defeitos tão bem expressos e tão bem sintetizados pelo gênio de Eça de Queiroz na figura prototípica de Gonçalo Mendes Ramires.

Há fados de diversos tipos: os "corridinhos", de Lisboa, movimentados e por vezes até acompanhados em coro ou com palmas ritmadas pela plateia; os patrióticos, com sentido mais épico que lírico; os religiosos, tendendo para o místico; os solenes de fundo lírico, do gênero conhecido como "fado de Coimbra", sempre ouvidos em respeitoso silêncio.

Em Lisboa, nas tradicionais “casas de fado”, sempre abertas para acolher os que vão ouvir o fado, mesmo que nada comam ou bebam, entre um fado e outro, come-se, bebe-se, fala-se, grita-se, ri-se, discute-se. Mas, tão logo os primeiros acordes de uma nova música se fazem ouvir, faz-se completo silêncio.

Não se fala durante o fado. É quase profanação fazê-lo. Recordo do modo engraçado com que certo fadista chamou severamente a atenção de um grupo de rumorosos rapazes que haviam ousado perturbar o silêncio de rigor com algumas risadinhas mal abafadas: - Ó meninos, vossas tias não vos ensinaram que o fado se ouve de bico calado?

Em Coimbra, nem se aplaude o fado à moda costumeira, batendo palmas. Isso seria falta de respeito. Por costume antigo, para significar que gostou do canto e de sua execução, o ouvinte limita-se a tossir. Ao fim do fado, põem-se todos a tossir. Num primeiro instante, isso causa estranheza. Mas, no contexto de Coimbra, isso é muito natural.

Um dos fados mais divulgados da célebre cantora portuguesa Amália Rodrigues (1920-1999) tem precisamente o seu nome. É o famoso “Fado Amália”, que inicia com estes versos: “Amália – disse-me alguém com ternura / Amália – da mais bonita maneira”.

A certa altura de sua carreira, Amália Rodrigues já era uma cantora consagrada, já cantara nos mais diversos países e gozava de fama internacional,  mas passava por uma crise de depressão e tinha resolvido abandonar a carreira. Saiu de Portugal e veio morar no Rio de Janeiro, onde vivia incógnita e andava sempre disfarçada, com óculos escuros, para não ser reconhecida por ninguém. Estava decidida a jamais voltar a cantar em público.

Conta-se que, certo dia, estava em um mercado carioca, andando no meio das barraquinhas, quando se aproximou dela uma moça, toda vestida de branco, visivelmente grávida e perguntou em inglês se ela era “Mrs. Rodrigues”. Amália falava bem o inglês, mas respondeu “I don´t speak English” e quis fugir. Então a moça insistiu:

- Senhora, note que eu estou grávida e há quatro meses ando pelo mundo à sua procura. Por favor, pelo menos me ouça, pois tenho uma coisa muito importante para lhe dizer.

 Amália parou e se dispôs a ouvir. A moça, então, explicou que era judia nascida em Israel e quis casar com um não-judeu; por isso fora amaldiçoada pela sua mãe. Entre os judeus, a maldição materna é algo terrível, é a pior coisa que pode existir. “A bênção do pai fortifica as casas dos filhos, mas a maldição da mão as destrói pelos alicerces”, está escrito no Eclesiástico (3,11).

Amaldiçoada pela mãe, a jovem, em desespero, resolveu se matar. No momento em que ia realizar seu intento, porém, aconteceu de ouvir numa rádio a bela voz de Amália, cheia de louçania, a cantar um fado. A emoção produzida pela voz e pela música ocasionaram uma transformação profunda na jovem, despertando nela uma esperança que parecia para sempre perdida.

- No momento em que eu ia me matar, eu ouvi uma música sua e não me matei por sua causa e cheguei à conclusão de que a única pessoa que pode me absolver da maldição de minha mãe é a senhora. Por isso, estou há quatro meses à sua procura, viajando de país em país e só agora a encontro.

Pegou, então, a mão da Amália, colocou-a sobre sua barriga e disse:

- Esta menina, que vai nascer, quero que se chame Amália e tenha sua bênção. A senhora consente?

É claro que Amália consentiu. E, emocionada, se pôs a chorar, abraçada à judia grávida, que instantaneamente se tinha transformado numa amiga muito querida.

Naquela mesma noite, Amália telefonou a Portugal e contou o episódio a um poeta amigo, que, inspirado nele, criou a letra do fado Amália. Foi esse episódio que curou a depressão de Amália Rodrigues, marcando o recomeço de sua brilhante carreira artística.

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