ARTIGO

Aquilombole-se!!!

Por David Chagas | 27/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Aquilombole-se! Não tem coragem? É preciso coragem para aderir a causa de justiça e reconhecimento como esta. Também para desvestir-se do que tem sido até aqui, se acredita ser parte de movimento de oposição ao racismo, de todo justo, num país como o nosso, maioria negra e miscigenado.

Para alcançar esta nobreza de espírito, coloque-se de forma decidida no lugar do outro, de seu sofrimento, do quanto foi e é obrigado a calar-se por reivindicar justiça, enxergar além dos olhos, denunciar, conclamar a que se somem os que acreditam numa sociedade justa, despida de hipocrisia, unida e verdadeira.

Não é fácil lidar com gente que, para dar aparência de ser politicamente correta, vive dizendo não ter preconceito, não ser racista, respeitar diferenças. Valer-se de retórica usando palavreado pouco sincero, blá-blá-blá, sem fugir de comportamento que denota o avesso disto, talvez não chegue ao fim desta leitura.

Bom seria dizer de experiências tidas, vivenciadas, sentidas por mim, por tantos, no olhar, no gesto, no exercício cotidiano do mal de que tantos se orgulham de praticar. Obriguei-me a escrever sobre ao assistir às celebrações do dia internacional da diversidade racial, em Brasília. Onde vivo, ninguém cogitou disso, acredita.

Quantos são os que se juntam a diferentes, sejam negros, sejam portadores de necessidades especiais, sejam pessoas de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero para lutar ao lado provando que cor da pele, alterações genéticas e comportamentos de quaisquer natureza que não destruam nem destratem vida e natureza, não desdizem a condição humana?

Aqui, hoje, quero lembrar que “Meia palavra mordida / me foge da boca. / Vagos desejos insinuam esperanças.” Valho-me da palavra poética de Conceição Evaristo, uma das mais notáveis figuras dentre intelectuais brasileiros, negra, para alimentar o que penso. Tomara dê o tom que espero em outro contexto, não o criado pela autora. Preciso citá-lo, pela beleza e pela verdade nele contida. Em situações que revelem o comportamento linguístico e social que pretendo, a palavra de Conceição Evaristo é sempre bem-vinda.

Muitos de meus leitores, generosos comigo na leitura do que escrevo, gentis em seus comentários, talvez, hoje, na expectativa de que fechasse o verão com alegria, se espantem do tema escolhido. Ando cansado de tanta injustiça espalhada pelos brasis.

Alguns dirão da aceitação que tenho, da forma como tracei minha caminhada, meus dias e minha vida. Tenho consciência disso. Houve, no entanto, injustiças pesadas. Talvez não tenha sido, é bem verdade, numa cidade amiga como esta, mas assistir a tantas demonstrações de comportamento equivocado, fere-me igualmente.

Me orgulho da sopa genética que me constitui. A expressão, grosseira, era muito usada por diplomata que serviu comigo em posto onde trabalhamos juntos, repetindo meu nome. Bom ter tido pais e avós que tive e encontrar em mim o signo da brasilidade. Saber que há, por um lado, presença judia, aloirada, olhos claros, num ancestral de origem portuguesa, inteligente, elegante, educado e forte na ação em honra da justiça e da verdade e, em contraponto, inteligência igual somada à força do trabalho escravo, marcada pela tortura e maldade impostas, enfrentadas com resistência em favor da vida com dignidade, sustenta a minha história.

Claro está que conhecendo distintos países e tendo convivido com diferentes culturas, foi possível encontrar gente capaz de reconhecer, antes da cor da pele ou do cruzamento de raças, a formação recebida, a cultura assimilada, a honradez do caráter. A maioria, no entanto, sobretudo aqui, despreza o que deveria ser fundamental, essencial, gritante.

Chego a esbarrar em conceituações existencialistas para tentar entender. Ser como?  Em si ou para si? Ou uma combinação de ambos, como sugere Sartre? Fugir do supérfluo, procurar o real sentido de ser, escapar à temporalidade, que limita em si mesmo

Em leituras feitas, aprendi que nós, humanos, temos a tendência em classificar nossos congêneres segundo o conceito de raça, coisa aprendida com Hipócrates, há mais de 2.500 anos. Tantos anos passados, há quem não tenha acompanhado a evolução do pensamento e entendido que definir pessoas diferentes com critérios científicos podem trazer complicações sérias. Pesquisadores argumentam, em publicação na Science, ter chegado a hora de superar o conceito de raça como ferramenta para entender a diversidade da genética humana.  Segundo eles, na melhor das hipóteses, é contestado e confuso e, na melhor, nocivo.

Tenho milhares de nomes que bem merecem ser exemplo para comprovar o dito. Começaria por Cruz e Sousa, na literatura e, se vasculho papelagem histórica antes dele, Aleijadinho. Se o ancestral exemplar deve ser outro, Zumbi dos Palmares. E por aí vai. Em tempos modernos, então, não fossem os negros e seus descendentes, quanto se teria perdido do Brasil de agora, em cultura, arte, construindo ou reconstruindo com seu trabalho, o melhor deste lado positivo e bonito de nossa história.

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