ARTIGO

Melhor esquecer o tempo em que vivemos

Por David Chagas | 20/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Não quero ocupar-me, aqui, de um mundo caduco. Nem do mundo futuro. Sigo a lição do poeta  e sinto que devo olhar meus companheiros que seguem preso à vida, com relativo apreço, não nego mas taciturnos.

Que coisa a vida! Por mais que as situações nela se apresentem com aparente solidez, terminam, muitas vezes, de forma insólita, tempestuosa e abrupta.

Numa conversa de bar tudo se desmorona. Ao fim de um espetáculo teatral a personagem pode despertar no espectador o que parecia adormecido e tudo se desmorona. Valho-me aqui do pronome indefinido na tentativa de alcançar, com ele, o sentido que busco: a totalidade das coisas e dos seres. Estou a buscar explicação para  recolherdo momento, não o que parece ser, mas o que tenha sido.

Contam-me os jornais no momento em que escrevo, o sucedido em programa de televisão, líder em audiência;Para mim este sim deveria ter necessária intervenção do governo, não pelo que mostra, todos sabemos, mas por mostrar em veículo livre de censura a que nem mesmo os pais conseguem impor impedimento junto a seus filhos, a insensatez do mundo atual. Um desserviço.

A hora em que vai ao ar em nada justifica sua exibição. A cada noite, segundo contam os críticos, há clara exposição de comportamento que revela a deterioração do amorexpondo cada um n que tem de seu e ocupando-se, na maioria das vezes, em fazer da mulher, tão vitimada no Brasil-presente, objeto.

Em tempo como este que nos toca viver, obscuro e nefasto, quanto mal se esparrama por todos os lados. Conversas distorcidas, reproduzidas no convívio, prontas a destruir o resto de paz, se paz ainda existe.

Tivesse o homem outro comportamento, forma mais singela de ver o mundo, talvez as coisas fossem diferentes. “A história da psicanálise se apoia na transferência e coloca o campo do amor em primeiro plano, o que, por sua vez, reconstitui o campo da verdade”.

Acreditasse no simples, permitisse acercar-se de verdade e sentimentos bons, entendesse a forma rápida de que se vale o tempo para consumir segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, perceberia quanto, estar aqui a observar e entender tudo isso, exige permanência e permanecer independe de vontade própria.

“São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho.”

Não é desabafo nem  tentativa de purificar o espírito das impurezas provocadas pela toxidade do momento. Também não estou a remexer estados afetivos ou lembranças recalcadas no inconsciente.

Os arredores, marcados por doenças, mortes, incertezas são ou não sinais sugerindo mudanças? Há visível insensibilidade para isso.

Sofri muito ao saber, por exemplo, da morte de Paulo Caruso, o genial chargista, que, ao lado do irmão, esteve em Piracicaba quando, presidente do Salão Internacional de Humor,  pude recebê-los, jovens que eram, ainda estudantes, para estarem entre famosos e notáveis. Aliaram-se a Millor, Zélio, Ciça, Angeli, Glauco, Luiz Fernando Veríssimo, Laerte em reuniões inesquecíveis.De-repente, a perfeição do traço, a forma correta de interpretar o instante, os lápis, as cores, tudo se interrompeu porque Paulo Caruso trocou tempo e espaço.

Na semana última,já andava estonteado com tantas e seguidas mortes.Burt Bacharach, por sorte, deixou canções. Glória Maria, jornalismo entremeado de histórias. Saura, entre tantos filmes, Cria Cuervos, excepcional, metáfora política sobre a ditadura franquista, lançado em 1976, num momento em que o Brasil também vivia afogueado por ditadura de dimensões muito próximas àquela que matara tantos e destruíra a liberdade.

Na manhã sombria, a de agora, a inesperada despedida de Ariana Castellano Pieroni,para mim, a artista plástica, a cantora de diversos estilos, com quem, a última vez em que perambulei pela rua do Porto, pude saborear delícias. Ariana, a quem conheci tanto, , com quem gostava de encontrar pelas ruas da cidade, de quem escrevi crônicas que revelavam sua beleza além do rosto, a que em nós existe e nela havia tanta, despediu-se sem avisar, deixando um pacote imenso de saudade e um pote de lágrimas sem fim.

O que fica em mim diante de tudo? O soluço entrecortando o pranto em suspiro demorado, na vã tentativa de entender o tempo dividido pelo sol em horas. De uma só vez, num mesmo instante, fazendo acontecer um punhado de coisas.

A razão de escrever é estar, como ensina o poeta, preso à vida, olhando ao redor para entender quanto a humanidade se deixa envolver pela insatisfação, pela angústia, o medo. No entanto, sonha. Sonhando, apesar de tudo, nutre esperanças.

“Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera”.

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