ARTIGO

O humor e a intolerância

Por Edson Rontani Júnior | 15/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Em conversa com Alceu Marozzi Righetto, lá pelos idos de 1989, me lembro dele comentando sobre a censura no Salão de Humor de Piracicaba. Fazia eu um trabalho sobre a repressão aos jornalistas para minha graduação em comunicação social. Righetto me relatou, não me recordo ao certo se foi no Salão de Humor ou em outra exposição local, que um militar chegou a cobrir com fitas adesivas as “partes pudendas” de mulheres seminuas, como os seios à mostra. Na verdade, a “falta de pudor” nos salões de arte de Piracicaba espelha a liberação sexual vivida a partir dos anos 60 e reprimida pelos censores nos anos seguintes.

Rubem Fonseca, na edição especial da centésima edição de “O Pasquim” discorria sobre o tema “palavrão não é pornografia”, comentando que, na literatura, se pode utilizar palavras ditas “à boca suja”, incitando o ato sexual, sem que isso fosse uma ofensa moral, ou seja, nada a ver com a pornografia.

Em 2012, ao escolher “Intolerância” como prêmio especial, o Salão Internacional de Humor de Piracicaba procurou fazer um balanço sobre sua vida. Aliás, o Salão surgiu como forma de arrancar a mordaça sobre as manifestações culturais, sociais e políticas das quais os brasileiros sofriam cada vez mais com a reprimenda militar. O Salão de Humor foi a ferramenta para que artistas se expressassem diante da liberdade da comunicação. Ao longo deste tempo, muitas charges e cartuns buscavam um segundo sentido sobre o que realmente queriam dizer seus autores. Poderia haver mais de uma interpretação sobre o mesmo desenho. “O rei estava vestido”, primeiro prêmio do Salão, desenhado em 1974 por Laerte, espelhava o conto de Hans Christian Andersen ou era uma crítica aos porões da ditadura? Taí a dúbia interpretação ...

Roberto Marinho e Adolfo Aizen - A inteligência peculiar do jornalista Gonçalo Júnior reuniu em 2004 um senhor livro lançado pela Companhia das Letras intitulado “A Guerra dos Gibis” – cuja versão ampliada está em vias de ser colocada no mercado -, relatando a formação do mercado editorial brasileiro e a censura dos quadrinhos de 1933 a 1944. Ler quadrinhos, nos anos 40 e 50 causava doenças mentais, falta de evolução cerebral e atentava a moral e os bons costumes. Quadrinhos americanos incitavam a violência. Não falaram o mesmo da TV e dos games décadas mais tarde?!? O relato de Gonçalo mostra a intolerância comercial como meio de formar leitores de desenhos em quadrinhos. Essa guerra de gibis foi travada por Roberto Marinho e Adolfo Aizen, antigos amigos e ferozes concorrentes através de O Globo e da EBAL (Editora Brasil América Ltda.). Além disso, mostra o caminho seguido pelo mercado editorial para se adequar às regras sociais dos bons costumes com publicações como “História Sagrada” e “História Monumental”, e outros ícones ufanistas da EBAL.

Aí é que surgem valores nacionais como Maurício de Sousa (com a HQ “Bidu”), Ziraldo (com “Saci Pererê”), Max Yantok, Jayme Cortez e tantos outros. Fizeram estes o quadrinho acadêmico, depois contestado por vanguardistas como Millor, Glauco Rodrigues, Watson Portela, Gedeone Malagola...

Em 1969 surge “O Pasquim”, grande opositor ao regime militar. A vanguarda do humor se instala mesmo com a ação dos censores, que buscavam mais que “partes pudendas” nas páginas do semanário. “O Pasquim” foi a base para que jovens piracicabanos criassem na cidade um salão pioneiro no país cujo negro do nanquim contestava a ordem social estabelecida. Carlos Colonnese, Righetto, Fagundinho, Fausto Longo e Adolpho Queiróz, entre outros, deram a cara para bater. Conseguiram. Enfrentaram a intolerância política com muita seriedade, transformando o Salão de Humor na casa da expressão do brasileiro e, depois, do mundo.

Intolerância foi pedida também pelo Salão na época do massacre do Charlie Hebdo. Uma bandeira que não pode ser baixada, afinal, Piracicaba tem de prezar por ser intolerante com ... o mau humor!

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