ARTIGO

O que me deixou o tempo

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Tempo, Tempo, Tempo, Tempo, se me podes ajudar, respondas: quem deitou fora o limoeiro pequenino, a goiabeira, o eucalipto e o pé de jacarandá? Quem deu fim à laranjeira defronte à casa, carregadinha de flor, e ao cajueiro, viçoso, plantado mais adiante, entre outras árvores, no platô, na extensão da esplanada? A goiabeira, prenhe de frutos, já com flores para nova colheita, quem?

Quem fez tudo isso sem licença alguma? Quem, olhos sem luz, insensível, sem alma, desfez a cerca de bambu, desrespeitando seu talhe alongado, lanças bem postas, capazes de indicar limites como se, juntas, guardiãs do bem, clamassem, a quem do cercado se aproximasse, por atenção e cuidado?

Recortados nas extremidades, os brotos, amadurecidos, em tom pastel, ao sol de todo dia, davam ao longo da extensão, solidez e segurança. Bem mais tarde, ao correr dos dias, pude saber quanto se assemelhavam, vistos na distância, a um quadro impressionista.

Ao vê-lo agora, destroçado, desfeito em sua beleza bem composta que era com o azul do céu, impoluto naquelas paragens, penso comigo se a intenção era mesmo provar a ação do tempo ao desfazer-se do ter sido sem qualquer possibilidade de eternizar-se, a revelação de outro momento, outro sol, outro instante?

Antes de tamanha crueldade, não pelo que és, mas pelo que foi, Tempo, Tempo, Tempo, Tempo, registro, não minha, mas história que me enriquece lembranças.

Hoje parece não haver mas tempo de sentir o correr do sol, livre de nuvens, abrindo-se em luz para desenhos como este, feitos ao longo de seguidos sóis, do amanhecer ao fim da tarde, para, na noite, dar à prata da lua, oportunidade igual para a prata de seu brilho, criando novas impressões, permitindo ouvir interjeições diversas de emoção e espanto.

Por que tirar de quem, ao passar pelo local, fazendo caminho na vereda adiante, a oportunidade de olhar e, olhando, ver e, vendo, sentir emoção, êxtase, alumbrando-se com quadro como este?

Aquele lugar silencioso, calmo, propício à meditação e às lembranças não poderia esvaziar-se destes espetos lanceolados, discretos na cor, belos, guardando por trás deles muito do que disse antes neste escrevinhar de histórias: árvores, pássaros livres, galinhas em festa, entre muitas, Branquinha, senhora de si, cheia de vontades, a que um dia se deixou banhar em anil e goma, Catito, um porquinho de estimação, rosado e livre, e o balanço – ah, o balanço! – que levava a alturas inimagináveis os pequenos que ali viviam, permitindo ver tudo o que lhes conto agora, das alturas, fazendo reais os sonhos.

Seriam prenúncio aquelas aventuras ou permanecem, fazendo resistir, ainda que adormecida, a criança?

Quantas não foram as viagens, fazendo decolar a goiabeira que se abria em troncos para nela caber madeira estendida, cabine de avião, capaz de levar, na imaginação do menino, daqui para lá, de lá para cá, a continentes supostos e sonhados, até então, desconhecidos. Sonho? Como sonho? Não teria sido real tudo aquilo?

Quantas descobertas!

A torre de Pizza, o Porto de Palos, a torre Eiffel, o Tamisa, o Danúbio, tudo o que a história lida pela mãe em Europa Tranquila, ensinara. O Vaticano onde se escondia João XXIII, amado pela gurizada, velho e querido avô, gordo, bonachão, orelhotas feitas para ouvir o mundo, prece lúcida, fala adequada, em Concílios oportunos para despertar a humanidade.

Sem conhecer, sem abraçar, sem tocar, sem jamais supor caminhos e gentes por onde, aterrissados, caminhávamos, escrevia, neste tempo, tudo o que me ditava este Senhor de tantos destinos.

Não me julguem saudosista. Quero apenas saber quem, sem luz na alma, fez do que lhes conto agora, espaço bem composto, um amontoado de nada, jogando ao lixo história que não conheceu. Pior, não sentiu.

Ainda bem guardado em velho coração, o lado direito e o horizonte que a vista buscava no cair da tarde extasiada com luz e cor tão próprias do ocaso.

Do outro lado, no mesmo espaço, a frente e o lado direito da casa, com vida florescendo em igual beleza. Buganvílias, dedais de ouro, roseiras e um pedregulho chato, mas bonito de olhar, calçando a terra, onde verdejavam verduras vertendo vida em canteiros bem postos e tomates de diferentes tamanhos cor e tom fortes se somando à esperança ali bordada.

Uma parreira de uva, carregada de racimos, ao despontar novembro, coloria de rosado o advento do Natal, provando ser símbolo de plenitude e vida. As uvas, em silêncio, expondo promessas de Deus em seu livro. Alertar? Elucidar? Ou reforçando a cultura judaica de Seu Filho bem amado?

Um mamoeiro esguio, frutos a mais não poder, filhotes agarrados ao seio materno, guardava a ponta final do terreno interno, ao lado de um tanque que a tudo saciava sede e alimentava vida.

O tempo. Soube passar. Eu não. Deixou-me a olhar e ver. Ele e o rio. Idênticos na lição dada. Não envelhecem. Não choram. Não riem. Correm, escorrem, prosseguem na expectativa de outras vidas alimentando o tempo.

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