Amigos ainda os tenho que duvidam quando – em nossas cada vez mais raras conversas de botequim – insisto em uma de minhas poucas certezas. A de que eu detestaria ser jovem nos tempos atuais. Não vejo graça alguma em moços assemelharem-se a computadores, criaturas programadas. Cadê o proibido? Cadê a fantástica aventura da transgressão, o desejo inesgotável de querer consertar o mundo, de promover revoluções? E, ainda mais importante, cadê o pecado?
E eis aí a decepção, o vazio dos tempos: se pecado é transgredir normas divinas, o fim do pecado deve, pois e também, significar o fim, a morte do divino. Ora, se chegou-se ao fim, a festa acabou. Seja o que tiver sobrado, Carnaval torna-se um daqueles chamados tempos míticos que, portanto, contam histórias reais. E quanto de verdadeiro há nos mitos!
A história da Colombina, do Pierrô e do Arlequim – o delicioso triângulo amoroso – é a tradução perfeita do Carnaval. Quem viveu amores de Carnaval pode confirmá-lo. Os apaixonados não se sentem infiéis em seus delírios e emoções. Põem-se acima da lei, da moral, da religião. Os mascarados não carregam máscaras. Despem-se delas, permitindo surgir a verdadeira pessoa, aquela escondida nos monturos dos preconceitos sociais. Colombina conhece essa paixão e não aceita estar dividida. Suspirante, balbucia: “Pudesse eu repartir-me / encontrar minha calma / dando a Arlequim meu corpo.../ e a Pierrô, minha alma!”
A farsa verdadeira parece estar em nossa fantasia do cotidiano. Cada um é aquele que precisa ser, não quem realmente é. Somos atores, cada um com seu papel no teatro do dia-a-dia. O Carnaval permite um reencontro consigo mesmo, vivendo sentimentos mais verdadeiros. Ou apenas mais honestos. O plebeu torna-se rei; a plebeia, rainha; o sisudo esbalda-se; o aventureiro escolhe a aventura; a freira troca o divino pelo humano; a prostituta recolhe-se. A embriaguez angustia, pois não há como esquecer: “pra tudo acabar na quarta feira”.
A palavra Carnaval deriva de “carne”, no sentido da carnalidade. Mesmo sendo festa orgiástica – “adeus à carne” – é de significado religioso, espírito de alegria e descontração vivido muito antes da chamada era cristã. Logo, há uma herança cultural milenar, que se reflete em tradição. Ora, a sabedoria ensina: “cada roda com seu fuso, cada povo com o seu uso.” E o uso é mutável. Mantém-se algo do espírito da origem, muda-se como fazê-lo. O Carnaval, pois, muda. E muda para permanecer o mesmo.
“Cada tempo com seu uso...” O Carnaval passou e continuará passando por transformações. Muda a sociedade, muda o Carnaval. E, com isso, ganham-se novas riquezas, mas perdem-se alguns tesouros. E, na opinião do idoso escrevinhador, uma das delícias perdidas foi a “perda do proibido, a morte dos pecados de Carnaval”. Ah! como foi bom “pecar no Carnaval”. Transgredir. Amar escondidamente. Viver a delícia e a tragédia de desejar a Colombina, desafio para Pierrô e Arlequim. Amores de Carnaval eram, na realidade, paixões com prazo definido: três dias de alucinações que terminam na quarta-feira.
Mesmo os tempos míticos se transformam. No Carnaval, “o diabo ficava solto”. Quem tinha medo dele ia fazer retiro espiritual. E, ainda hoje, isso acontece. Quem se entregava ao diabo – aliás, com alegria e prazer – vivia outra certeza: a “quarta-feira de cinzas”. E, ainda que embriagado e com fantasia, o folião ia à igreja, logo de manhãzinha, “receber as cinzas” do perdão. A farra valia a pena. O proibido, logo em seguida, era perdoado. Agora, no “vale-tudo”, qual a graça?