ARTIGO

A vida aventurosa e desventurada de um trovador medieval

Por Armando Alexandre dos Santos | 20/02/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Supõe-se que tenha nascido em Paris, por volta de 1325, o jogral e trovador Rutebeuf. Sabe-se que foi sempre muito pobre e infeliz, que tinha o vício de jogar dados, em consequência do que viveu sempre em extrema pobreza até morrer, por volta de 1285. Era um desajustado social. Em termos atuais, dir-se-ia que sua existência, sem embargo de ter frequentado os mais diversos ambientes, mesmo os da alta nobreza, nunca deixou de bordejar a marginalidade. Vivia compondo seus versos, suas farsas, seus “fabliaux”, seus autos religiosos, seus elogios a pessoas importantes falecidas, com uma fecundidade e uma facilidade de inspiração que até hoje impressionam os estudiosos da literatura medieval. Sua influência na história da língua francesa é muito grande; Le Goff o considera “o primeiro grande poeta lírico francês” (São Luís: Biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 506).

Seu francês era correto, de bom nível cultural, não denotando influência provinciana, mas sendo expresso no mais puro parisiense da época. Dominava vários estilos e escrevia muito. De suas obras, as que a história preservou encheram dois grossos volumes, publicados por Achille Jubinal (Oeuvres complètes de Rutebeuf. Paris: Chez Édouard Pannier, 1839). Escreveu sobre muitos temas. Em Le Miracle de Théophile, que talvez seja sua obra mais famosa, cantou em versos então facilmente inteligíveis pela população o milagre do monge Théophile, que vendeu sua alma ao diabo e depois, arrependido, invocou a Santíssima Virgem que, de espada em punho, constrangeu o maligno a devolver, ao monge, o pergaminho que este firmara com seu próprio sangue. O episódio, que na época impressionava profundamente os espíritos, inspirou não somente Rutebeuf, mas também o escultor que, numa série de alto-relevos num dos pórticos de Notre-Dame, imortalizou em mármore as cenas do milagre.

Casou com uma mulher velha, feia e tão pobre quanto ele - tema constante em suas autolamentações. Numa peça cômica intitulada O casamento de Rutebeuf, fazendo um jogo de palavras, o poeta se refere a sua esposa: “Quando casei com ela, estava pobre e embaraçada (grávida), / e eu também estava tão pobre e embaraçado (sem dinheiro) quanto ela. / Ela não é gentil nem bonita, é magra e seca, / tem cinquenta anos na sua tigela, / mas pelo menos não tenho medo de que me traia”.

Teria realmente 50 anos completos a Sra. Rutebeuf? Ou essa idade lhe terá sido atribuída por mero exagero poético? O fato é que há referências à fecundidade dela, pois em outras obras o poeta refere que ela continua lhe dando filhos. Rutebeuf era, ao que parece, “clerc”, ou seja, supõe-se que tenha recebido ordens menores, que na época eram conferidas a pessoas que não se destinavam ao estado sacerdotal, mas casavam e tinham vida de leigos comuns. Seus escritos revelam profunda religiosidade, sem embargo da marcada nota de anticlericalismo sempre presente, quase uma ideia fixa. Os monges relaxados e glutões, os padres de má vida, os dominicanos e franciscanos que ele abominava eram alvo contínuo de suas sátiras.

A esse respeito, assim se exprime Jubinal, na introdução às obras completas de Rutebeuf: “Se procurarmos nos dar conta do caráter geral e particular da poesia de Rutebeuf, encontraremos que ela sobretudo se faz notar pela causticidade, pela malícia, pela ironia. O velho trovador fustiga para todos os lados, sem se preocupar com quem ferirá; morde de bom grado a todos, por vezes até ao sangue; grita, troveja, invectiva, denuncia todos os abusos. Mas o fato predominante de suas rimas, o fato que retorna incessantemente em suas venenosas estrofes é seu amor pelas cruzadas e seu ódio contra o clero. Notemos, entretanto, que Rutebeuf jamais ataca o dogma ou Deus, mas o padre. No século XIII, era ardente a fé; o pensamento reformador que lançou luzes tão terríveis no século XVI ainda não existia. Assim, somente o mau uso que os eclesiásticos faziam de suas riquezas e de sua influência é que era criticado, mas respeitava-se a origem de seu poder e separava-se com razão, como coisas distintas, o levita do santuário.” (1839, vol. I, p. XX-XXI)

Rutebeuf viveu intensamente, ao que parece em contato com todos os segmentos da sociedade, sendo protegido do Conde de Poitiers (irmão do Rei São Luís) e, em certo período, do próprio monarca. Compôs peças claramente por encomenda remunerada, como elogios fúnebres e panegíricos. Mas o maldito jogo de dados, do qual se queixa, o impediu de acumular fortuna. Parece ter admirado muito o Rei São Luís, embora em algumas passagens lamente o fato de este se ter pela segunda vez lançado em Cruzada (o que Rutebeuf reputava fato prejudicial ao reino) e embora, também, o apoio dado pelo monarca às Ordens mendicantes novas não lhe agradasse.

Em resumo, parece ter sido uma pessoa infeliz, atormentada, sujeita a influências diversas e, sempre, colocando seu estro a serviço da própria sobrevivência. Mais do que um exemplo de lógica e coerência, seu estudo se reveste de especial interesse por mostrar a diversidade de influências culturais e até ideológicas, muitas vezes conflitantes e contraditórias, que agitavam a exuberante sociedade medieval - bem diferentemente do que imaginem muitos autores modernos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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