“Glorioso São Jorge, em nome de Deus, estenda-me seu escudo e suas poderosas armas, defendendo-me com sua força e com sua grandeza.”
O pedido de proteção ao santo, no altarzinho da sala, traduz a força da devoção de muitos anos. Dentro do nicho quadrado de MDF branco, fixado à parede e defronte à mesa, as imagens de São Jorge, de São Benedito e de Santo Antônio dividem espaço com anjinhos de porcelana, de metal ou de biscuit. A devoção a Nossa Senhora de Fátima e a Nossa Senhora Aparecida também revela a religiosidade da dona da casa. Waléria, 61 anos, vive só, mas sente-se protegida pela fé.
Em 2020, chegou a passar dez longos dias sozinha e sem se comunicar com ninguém, durante o período de reclusão, no início da pandemia da COVID. Leu todos os livros de que dispunha, assistiu a todas as séries da Netflix e, tantas vezes aflita, acendeu ora uma vela no altar, ora um cigarro para fumar.
Brasileiros ansiosos, deprimidos, com renda menor, mais sedentários e fumando mais.
Revelou-se esse cenário, durante a pandemia, numa pesquisa com mais de 44 mil pessoas, realizada pela Unicamp e outras instituições. Entre as mulheres fumantes, 38% relataram aumento de 10, ou mais cigarros, ao dia. A pesquisa detectou, também, que o maior crescimento ocorreu entre as pessoas com menor escolaridade.
A pandemia abriu uma janela de oportunidades para discutir a saúde — sobretudo as doenças pulmonares e o tabagismo, seu mais conhecido vilão. Assim, surgiu o Projeto Paradas pro Sucesso, com os objetivos de incentivar, no tabagista, a busca pelo tratamento e de prevenir, nos jovens, o vício
Vinha de família o gosto pelos cigarros. Na casa em que cresceu, Waléria via, desde pequena, o pai fumar. Em todos os cômodos, o pai deixava um maço de cigarros. Saía do banheiro fumando e esquecia-se de que deixara, aceso, um outro, no cinzeiro ao lado da cama. Como a mãe não aceitava que ela fumasse, aos 17 anos, Wal dividia os cigarros com as amigas na rua ou no colégio. No residencial bairro do São Dimas, bastava a rua atravessar para chegar à casa dos avós paternos. Eles, também fumantes, lhe davam guarida.
Waléria viveu o auge do consumo de cigarros no Brasil. No final dos anos 1980, quando se chegou à marca de 34,8% de brasileiros fumantes, ela tinha 28 anos. Cursou administração de empresas e trabalhou por 20 anos em Campinas. Nas salas de reuniões, envidraçadas, como aquários, os fumantes acendiam os seus cigarros, não se importando com os demais. Não haviam sido, ainda, escritas as leis antifumo que proíbem o consumo de cigarros e derivados em ambientes fechados.
Casou-se tarde e, sem filhos, novamente se viu, sozinha, quando o divórcio veio após 15 anos, um antes de a pandemia forçá-la ao isolamento social. Acendia velas diariamente e rezava. Pedia, a Nossa Senhora Desatadora dos Nós, que pusesse fim aos intrincados problemas que o país vivia; a Jesus da Divina Misericórdia, que olhasse para toda a humanidade, em sofrimento. Ajoelhada, Waléria também suplicava, com fervor, a São Benedito, filho de escravos, que a livrasse da escravidão do vício no tabagismo.
Chegou até mim, no consultório, determinada a tratar-se. Seguiu as orientações, comprou os remédios na farmácia e compareceu a todos os retornos combinados. Obteve êxito no tratamento e sentiu-se vitoriosa.
Questionei-a sobre os planos para o futuro:
—Adoro viajar! As praias do Nordeste têm um ímã sobre mim. Também faço aulas de Pilates e dança.
— E no altar caseiro? Ainda acende velas? — perguntei.
— Sim, diariamente, agradeço pelas graças que alcancei. Parar de fumar foi a maior delas.
Bondosa, diz que reza pelos médicos que a assistem, pelos amigos e pelos parentes.
— De hoje até domingo, vou acender velas para minha sobrinha. Vai fazer a prova do Enem.