A super lua. A miséria. A fome.

Por David Chagas | 18/07/2022 | Tempo de leitura: 4 min

Por David Chagas

Sem enredo. Estória para ler e contar. Da História, o acontecido, a data. É que estávamos ali, os três, sentados, quando senti a noite chegando, embrenhando-se para estar conosco e por toda parte. Vertendo luz sobre tudo e todos, soberana, a lua. Não sei dizer quanto de boniteza apercebida.
Sei o que senti no instante mesmo em que a noite me engolindo, sorriu por ela, fazendo brotar, de uma só vez, tanta beleza. Sonho? Fantasia? Verdade! Tudo junto, de tal jeito, que, para contar-lhes, vou de trás para a frente, no revés dos fatos.
Narrativa sem tempo A ordem é outra. Não posso falar do dia ao seu começo, mas de seu fim, no despontar da lua.
Serei capaz de tansmitir as sensaçoes todas se o leitor fizer de conta que anoitece outra vez. Foi na quarta passada. Sinta como agora, por favor.
Não sei contar como gostaria. Como conto, o que senti. Sem tocá-la, me me abraçou por inteiro. Não há palavra para a sensação. Procure sentir.
Para tanto, permita anoitecer outra vez. Quarta-feira. Hoje, domingo. A semana começa. Não importa. Se aquele, o dia não foi bom, se chuva, ventania, mau agouro, pouco importa. Do feio, nasce o belo, ensina Umberto Eco. Aqui, por exemplo, por onde vivo, coisa de gente má, ignorante que só, queimadas, fuligem e fumaça, desfazendo a beleza de tudo, destruindo. Daí, em meio, ela, agigantada, estonteante, bela, limpando a visão, desfazendo o embaçamento criado, exibindo natureza e vida.
Viu? Encontrou-se com sua luz e seu luzir, maduros, passadas semanas em que se construía para seu encanto? Se não, talvez me entenda exagerado, na emoção sentida. Enorme, estava. Tão grande que São Jorge, oculto nela, se perdeu. Nem seu cavalo branco que vejo desde menino, se mostrava. Era ela. Só ela.
Falta-me palavra para provocar o prazer que senti. Para poder dizer de seu rastejar no azul, é preciso ter sentimento, reconhecer-se antes, bem antes, na beleza que em nós existe. Se não admite, vá por outro caminho.
Uma criança pela rua, ao lado da mãe amargurada de tristeza, marcada por cicatrizes que a vida lhe tem feito, ao observar por sobre árvores a luz, grita: olha, mãe! E a mãe, desalentada, responde: lua cheia, filha! Nada mais.
Que afetos e emoções provocariam nela igual sensação, se lhe consumiram toda a beleza guardada ali, onde os sentimentos se misturam? Como vai perceber se deixou perder-se do olhar o azul verdejante da lua sem notar jamais sua deslumbrante cauda de pavão?
A menina pôde ver tudo. Por isso, ao sentir, gritou, como um dos meus, quando pequenino, desmanchado em sorrisos ao vê-la, não tão exuberante assim, mas sempre encantadora e bela, se agitava. Juntava os bracinhos para dar-lhe formato, dimensão, tamanho, sonhando tocá-la.
Não pode, dizia. Se tocar, cai e nunca mais veremos. É assim pequenina, como se mostra. Só para ver, olhar e sentir. Respirava fundo.
Por anos, enquanto ganhava tamanho e corpo, dizia ao ver a lua: para sentir. E respirava fundo. Por certo, sentia, como só as crianças sabem e sentem.
No meu caso, escrevo. Abancado, janelas abertas, espero vê-la ao passar passar por aqui. Estou certo seu atrevimento ao exibir-se. Para, olha, para num lento deslizar, seguir seu caminho, perseguindo, na distância, o traçado de estrelas.
Ao despontar pelos lados dos Campos do Conde, dá vida à floresta. Fui até lá, vivendo a expectativa, para recebê-la. Ao surgir, tingiu de rosa o céu emocionando quem por ela esperava. Iluminou a floresta, coloriu ipês ao firmar-se na caminhada pelo azul. Altaneira, em seu passeio pelo céu da cidade, entre luz e sombra, artista de precisão, projetou imagens nas paredes sugerindo beleza no que, até então se perdia desta explosão de verdade. Aquarela delicada, diferente do real, próxima do sonho.
Extasiado, amplio ainda mais as sensações ao conhecer, na mídia, nesta mesma noite, as peripécias do telescópio agigantado, solto no espaço. Ampliam-se, em mim, desejo e sonho em diferentes e sucessivas emoções. Gastei todas as exclamações guardadas a vida toda, em cada nova foto. Pensei comigo a sorte de ter tido tempo para conhecer tudo isto! Pude saber das galaxias desenhando contorno aconchegante para berçar estrelas revendo, no universo, todo o seu mistério.
Num curto espaço de tempo tudo ficou mais bonito do que já é. Boniteza indescritível.
Na noite começada, a criançada que caminhava pelas ruas viu a lua. E exclamou como eu. Versos soltos. Uma delas, ao cruzar a esquina, gritou: Mãe, olha!. E a mãe sem emoção, respondeu: lua cheia, filha! Não era isso. Era mais, muito mais. O espírito infantil, com sua exclamação, de espanto, regado a miséria e tristeza, deu beleza ainda maior ao acontecimento.
Não posso escrever. Procuro um meio para fazer com que sinta da forma como senti, Aqui, calado, contando a mim mesmo o espanto do instante de tão extraordinária visão que a tudo iluminava, pude também sentir que, ao revelar a cidade, expunha sua miséria humana, a fome desbragada, o descaso político, o desserviço dos senhores aboletados no poder.
A lua, na sua elegância e beleza, também se prestou a isto. Soberana, magnífica, mostrou a que veio, além de exibir beleza e encanto. Agora, fez sentir a vida em toda sua dor. Aqui. Ali. Por onde passou, em todo o mundo.

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