Por um decreto de ternura

Por David Chagas | 27/06/2022 | Tempo de leitura: 4 min

“Um decreto de ternura com urgência e, com urgência, um esquema de feijão.”
Muitos dirão que exagero. Outros talvez não entendam o porquê da inquietação. Já não é mais possível aceitar o trote dado à vida pelos boleeiros que a querem conduzir nos dias de hoje. Haverá quem, como o poeta, como eu, revoltados, por verem esvair-se os sonhos do mundo? Ou a maioria não se importa com a desordem instalada?
Num domingo azul, como este, o leitor, suponho, preferiria divertir-se com crônica que lhe trouxesse bem-estar e prazer, alegria, o tal decreto de ternura. Venho eu, dia raiado, contando o que me aflige, criando sombras à luz do sol esparramado por todo o hemisfério quando deveria mesmo era estar falando do mar, azul a esta hora da manhã, das flores que, sem nenhum receio, brotam no inverno, dos pássaros, soltos, em insistente lição de liberdade sem saber que, entre homens, há sempre mal à espreita.
É pena, mas a manhã tecida pelo sol se enfraquece se lhe põem à prova força e brilho, ao jogar luz num punhado de meninos esparramados sobre a calçada, mãos estendidas por um pedaço de pão, um gesto de ternura. Há quem não veja. Há quem, vendo, se obrigue a olhar sem sentir.
Se pudesse enumerar tudo o que fez da semana um desconcerto haveria quem protestasse, estou certo. O genial teórico da linguagem ensina a forma como a palavra revela o mundo e dá tom ao sentido que lhe confere o olhar.
Todos sabemos que o tempo cura, faz esquecer, passa. Não leva consigo, no entanto, o peso da angústia. De nada adianta trancar-se intimamente na vã tentativa de impedir o peso da alma. Só há um caminho para quem, vendo, pensa e sofre: a palavra. Nela é possível saber o que incomoda o narrador e como sente os que, contemporâneos dele, supõe, sintam iguais desconfortos.
Não jogue sobre o escrevinhador carga maior que esta: a de sentir, ver, pensar. Se escreve é para dividir entre muitos a agressão sobre todos, muitas vezes, incapazes de sentir.
Seria tão bom encantar-se com estrelas, que o olho nu alcança, umas e outras, para aliviar a profunda escuridão da noite, desta noite que se avulta sobre o dia, visível, sem que muitos se apercebam dela. Quem sabe esta conversa domingueira possa ao menos trazer luz a este apelo.
Revejo um poema. Ponho-me a refazer seus versos: Tento. Não diga que nada fiz. Tentei, ao menos. Muito do que desejei na vida, já não quero mais, especialmente esta repetição de coisas que queria atrás, bem atrás, antes no tempo, nos dias e anos já contados que me parecem reaparecer agora, ampliados.
Prometi a mim mesmo, quando a segunda-feira despontou, dar novo sentido ao tempo. Busquei por poema ou salmos de Davi, celebrando natureza e vida, ensinando a revelar a alegria, festejar o coração de Deus. A semana antepassada já deixara marcas muito dolorosas sobre todos, cruéis, para quem vê e pensa. Como entender, por exemplo, que um fazedor do bem, protetor de indefesos, guardião de direitos, pudesse, ao cumprir o que seria dever do Estado, encontrar seu calvário, seu flagelo, sua coroa de espinhos, sua morte no espaço escolhido para proteção e acolhimento de vulneráveis? Ou inocentes trabalhadores, esfaqueados no cair da tarde, no transporte que os levaria ao trabalho ou de volta à casa? Ou o procurador, imagine, um procurador de município, responsável por espancar colega de trabalho, sua chefe, revoltado com processo determinado por ela que comprovaria seu desajuste à função e à vida?
Impossível não repetir a canção. Uma vez mais, sangrar a mais não poder como têm sangrado os índios brasileiros e seus protetores. no afã de preservar-lhes a vida, sua essência, sua cultura, seus valores ou os que pensam e, pensando, sentem.
Uma canção dos Beatles, talvez, amenize o desapontamento. Penso nela porque vivi minha juventude neste tempo culturalmente rico, esbanjando esperanças. Na memória, vívido, Paul McCartney e Let it be.
Sinto-me iluminar, como se no texto da canção lesse o decreto de ternura de que precisamos tanto. Que geração aquela, fazendo mais jovem a nossa juventude. Quantos raios de luz, obrigando-nos a rever conceitos, estabelecer novo comportamento musical e artístico oferecendo ao mundo a possibilidade de mudança. No Brasil, movimentos de vanguarda, muitos deles nascidos na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, sem imaginar, jamais, “a que ponto a cidade turvaria este Rio de Amor que se perdeu”.
Nem mesmo a escuridão imposta pelas ditaduras latino-americanas roubaram o brilho da vida neste tempo dourado, capaz de, pouco a pouco, desfazer o chumbo dos que desejavam tirar o brilho e a essência do bem.
Quem tem esparramado, agora, pedras no caminho? Com tudo do que nos foi oferecido antes como explicar o retrocesso? Duro saber que a pátria amada, a pátria minha, vai sendo vista pelas barbáries que são cometidas aqui contra mulheres, contra inocentes, contra nós mesmos. O que lhes falta, além da Educação? Leitura e informação. Falta-lhes gente devidamente preparada para ensinar e fazer da sala de aula e dos livros, caminho de luz e vida. Falta-lhes abrir a janela para sentir o ar que entra por ela. Sentir o sol pedindo passagem. No ritmo do poema, porque só mesmo um poema, afirma Mário Quintana, salva afogados.

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