Por que conto histórias? Para rever quem fui. Onde fiquei?

Por David Chagas | 13/06/2022 | Tempo de leitura: 4 min

“Seu” Zezinho, mais rápido que o pensamento, salvou o bichinho que me ofereceu naquela manhã. Trouxe comigo o pobre, pele puxada ao vermelho, magricelo, grunhia, à procura do calor e do alimento maternos. Os outros, um foi para neto que comigo estava, e o outro, nunca soube o destino.
Assim começa a primeira história. A de agora, lembranças diversas me obrigam a contá-la. Do menino, filho de amiga querida, hoje pelo mundo, posso saber em duas ou três palavras, que o conto de Catito ainda mexe com ele. Descobri, quando pequeno, seu gosto pela história, visitando sua mãe. Ao chegar, pergunta áspera, provocou-me, desejando saber o que fizera do leitão. Observava-me de forma diversa de quando me recebera em outras visitas, pouco perguntando.
Com olhar hostil, espichava por sobre mim os olhos, atento ao gesto, à fala. Queria saber de Catito, seu tamanho, por onde andava, o que fizera dele.
Difícil dar à narrativa tecida em pedaços da infância, num cenário onde personagens distantes voltam a encantar. O final é diferente daquele do jornalzinho infantil que caiu no gosto da meninada.
Conto do lugar, do cercado que contornava a enorme extensão do terreno, desenhado com esmero em pedaços bem talhados de bambu. Falo das árvores, da arrumação cuidadosa feita por meu pai. Das muitas galinhas ajeitadas em galinheiro bem arrumado, uma delas cheia de dengo e histórias, diferente até mesmo no instante de botar.
Quantas estórias guardadas me remontam ao tempo ido. A hora precisa ditada na passagem do trem de passageiros. O apito da máquina dando aos ouvidos dos campesinos a hora do relógio. O silêncio exagerado das alamedas, destruídas pelo tempo e pela insensibilidade dos homens.
Sem querer de volta o menino, mas tendo nisto o real motivo para lembranças, encontro eco na palavra de poetas portugueses modernos e me permito desvendar a alma no reencontro com o menino que deixei por lá. Chorro de lembranças. Viro e reviro a memória. Estórias. História.
Cutuca-me agora o desassossego do menino desejoso de entender Catito. Existira? Muitas perguntas tentando provar o real da personagem e de sua história.
Nem sei qual destas lembranças me provoca. Se Catito, se o pequeno desejoso de conhecer tudo a respeito do porquinho, hoje, senhor do mundo, perdido em terras estrangeiras, se o menino que fui e ficou por lá.
Catito, meu porquinho avermelhado, querido por mim e pelos meus, num tempo em que não havia porquinhos à sombra da gente, traz-me a alegria do passado, misturadas a esta, de anos mais tarde, com o garoto, desejando certificar-se do fato que fato foi, cobrando-me o que não me interessava lembrar.
Contar, isto sim, quanto Catito nos encantava a todos enquanto pequeno e, crescido, já gordo a mais não poder, a forma como nos olhava com demorado carinho, buscando, entre exclamações e dúvidas, seu desfecho, sem supor, como nós, tampouco supúnhamos, o fim que teria animal tão querido.
Naquela madrugada, seu Zezinho, na sua rudeza, esperava pela ninhada, sem imaginar quantos seriam. A porca, não poderia, no número de filhotes, ir além das tetas enfileiradas do peito à virilha, oferecendo a cada um o teto que lhes apetecesse, segundo a ordem de chegada. O velho, no trabalho a que se dispôs esperando pela leitegada, não demonstrava afeto, mas obrigação por ver, como resultado, dividendos necessários para o ganha pão diário.
Moleque, visitar a ninhada foi experiência inesquecível, por herdar Catito, parte de minha infância e da minha história e pelo aprendizado do momento.
Nascidos os dez primeiros, o velho viu que o trabalho prosseguiria. Vindo o próximo, tempo de resolver, não de pensar. Ao sentir que a parição continuaria, tirou da porca este e os dois últimos brotados na madrugada fria. Salvá-los do que determina o instinto e a natureza. Como? Não digo. Anos mais tarde aprendi que suínos devem ter filhotes em número igual ao de tetas. Daí ter acreditado o velho, herói.
Não contei isso ao pequeno. Tenho ainda comigo seu olhar arregalado de espanto e curiosidade por saber a razão de terem afastado os três porquinhos da mãe. Como explicar o canibalismo próprio da espécie diante de acontecimento, em si, enternecedor. Peso demais para um garoto de seis anos.
Catito, nome dado ao leitão, rubro na pele, desajeitado no andar, ainda surpreende a todos com sua história. Surpresa igual a que tiveram os meus, em casa, ao chegar, sem que ninguém soubesse em que companhia andava. Como foram compreensivos meus pais. Ali, no sítio onde vivia, acostumado a ver toda espécie de bichos nos quintais, queria assim, o meu. Caprichoso, meu pai tratou de separar no enorme terreiro, espaço para o porquinho, em tudo diferente do que nos outros terreiros existia. Em tudo, ajeitado, higiênico, digno.
Ajeitar na memória neste reencontro com a casa, seu terreiro, tudo que ali havia me motiva a contar histórias. Quem conta conto como este, por motivo que desconhece, por vezes se afasta do real. A alma repousa melhor no sonho.

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