Que língua é esta?

Por David Chagas | 30/05/2022 | Tempo de leitura: 4 min

Não faz mal algum à língua e à pátria quando nelas se alinham outras tantas palavras que não lhes pertencem nem foram ditadas por grandes escritores e se incorporam ao falar cotidiano. Provam que se renova ao acolher e acatar a necessária mudança, revelando o frescor da idade de quem cria, reflorescendo outra vez.
“Drão, não pense na separação/ Não despedace o coração/O verdadeiro amor é vão./ Estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura.”
Há os que se espantam quando digo amar a língua portuguesa e gostar do que vem a seu encontro fora de livros e distante de normas. Por sorte nosso país dá novo alento em favor disso levando Gilberto Gil à Academia Brasileira de Letras. Que sorte, a nossa!
Menino, aos oitenta, canta, dança, pensa trazendo frescor a tudo o que faz. No expresso 2222 em que se meteu em 1972, pela estrada do tempo chegou a 2022. Imortal, não sairá jamais. O poeta entende terminar na estação final do tempo, vencido o percurso pela terra-mãe, concebida de vento, de fogo, de água e sal. Depois, o trilho, um brilho que não tem fim.
Em Gil, uso particular possível da língua, em sua melhor e jovial vestimenta. Costuma temperá-la com figuras de beleza única, malícia, leveza e encantamento. Sabe valer-se de religiosidade e misticismo a seu serviço.
Não queira explicar. “Deixe a meta do poeta, não discuta/ Deixe a sua meta fora da disputa/ Meta dentro e fora, lata absoluta/ Deixe-a simplesmente metáfora”.
Chegou lá? Se não, vejamos: “Uma lata existe para conter algo/ Mas quando o poeta diz: lata!/ Pode estar querendo dizer o incontível./ Uma meta existe para ser um alvo/ Mas quando o poeta diz: meta!/ Pode estar querendo dizer o inatingível”.
Presente ao Roda Viva da última segunda-feira, Gil se manteve à altura de sua condição de imortal sem esquecer-se dos mortais comuns. Numa linguagem fluida, clara, provou estar atento a velozes transformações, muitas delas provocadas pelo avanço da tecnologia, sem permitir perder-se das raízes que fundamentam sua criatividade, seu estar no mundo, sua forma de escrever sobre o que deseja e quer, fugindo de empecilhos que impeçam trazer ao poema da canção, o falar do homem brasileiro.
Quando decidi que passaria toda minha vida a serviço da língua portuguesa, decidi fugir o mais que pudesse de seu lado autoritário, fascista. Até conhecer Barthes, sofri por isso. Criticaram-me ao misturar pessoas do discurso, ao lidar com verbos, ao brincar com palavras e usar muitas das ouvidas entre falantes, na rua. Gostava disso. Viajar pelos países de língua portuguesa, aumentou este prazer.
Como, diziam-me, misturar expressões, usar você, terceira pessoa do discurso, trabalhar verbos e pronomes na segunda pessoa? Houve quem me criticasse severamente tentando ensinar-me, velho sacerdote, o “pai nosso” tantas vezes recitado.
A aceitação obrigatória das estruturas da língua obriga à submissão. Fujo disso. Há quem não entenda. Queiramos ou não somos obrigados a cumprir o que foi determinado por normas estabelecidas, a que devemos cumprir.
Sorte encontrar entre mestres quem tenha sabido usar o português de forma particular. Guimarães Rosa, por exemplo, que, sem exageros, cria uma língua própria, carregada de neologismos, aglutinações de palavras, dando novos sentidos às velhas palavras conferidos por sons próprios da vida e da fauna do sertão. Mia Couto. João Cabral de Melo Neto. Zé Craveirinha, Rui Nogar. Chico Bosco, Emicida, para falar dos nossos, de agora, todos igualmente brilhantes, os dois últimos, como poucos, capazes de dizer o indizível, num linguajar seu, sábio, perspicaz e de fácil entendimento.
A angústia do tempo de universidade obrigou-me a caminho alternativo que me permitisse uso pessoal, sem tantas e severas observações normativas, sem tanto lápis vermelho na correção de textos de meus alunos, tantas vezes tão criativos, sem críticas a este ou àquele escritor porque, esquecido das regras, iniciou período com pronome oblíquo ou teve com a concordância uso indevido.
Por isso, ao fugir de tantas normas, optei por dedicar-me à literatura e, ao encontrar-me com escritores modernos, sentir o tratamento particular, o jeito próprio, pessoal até, de cuidar do idioma. Fique também claro meu respeito aos clássicos. Procuro por eles e me encanto. Em alguns deles, no entanto, sinto o quanto a gramática é tirana.
Longe dela ao tentar coibir a visão de mundo desejada. “Essa trapaça salutar, essa esquiva, eu a chamo quanto a mim, literatura”. Só a literatura permite este entendimento porque não submete a linguagem ao poder, foge, muitas vezes, de regras de estruturação para fazer-se compreender e, ao fazer isso, oferece encantamento, beleza.
Que língua é esta? A minha, a tua, a nossa. Novo esplendor em cada pátria. Xô, ao xicuembo dos tempos universitários. Kanimambo, Barthes! Longe do medo, da angústia, do sofrimento. Sem suruma nos olhos. Com suruma “eu não pode mais viver/ eu não pode mais saber”.
Verdade, não lhe parece?

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