Cancelados S/A

Por Rubinho Vitti |
| Tempo de leitura: 3 min

A bíblia conta na Perícope da Adúltera que uma mulher é levada até Jesus por ter sido apanhada em adultério. Ela é colocada no meio de uma roda e o povo está prestes a apedrejá-la, seguindo a lei de Moisés. Eis que o Messias solta a frase que ecoa há centenas de anos:
"Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra".
Foi o tempo de Jesus abaixar a cabeça para rabiscar umas palavrinhas na areia que a multidão se dispersou. "Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?". A adúltera respondeu negativamente e teve como tréplica: "Nem eu tampouco te condeno; vai, e não peques mais".
Tal mulher é tida como Maria Madalena, a primeira "cancelada" da história da humanidade. Eis que 2.022 anos depois, pedras estão sendo atiradas como balas perdidas digitais pela internet por uma verdadeira geração de "puros em pecado".
O "cancelamento", que antes era um termo mais usado para finalizar uma assinatura de televisão ou o cartão de crédito, agora é uma forma de apontar os dedinhos e julgar como se bem entende, igualzinho o povo moralista que seguia a lei de Moisés.
A "cultura do cancelamento" é um movimento que vem ganhando força a cada ano e significa, basicamente, interromper o apoio a uma personalidade após uma atitude indecorosa exposta, principalmente, em redes sociais.
Se o cancelamento começou com movimentos feministas, que acusavam e expunham de forma justa diretores de cinema, atores e outros homens poderosos que de alguma forma abusavam seriamente de mulheres durante anos, agora ele foi diluído em um mar de banalidades.
O cancelador se coloca acima do bem e do mal, como o detentor das regras de convivência em sociedade. É a pedra fundamental da moral. O cancelador só se esquece que ser cancelador não o impede de também ser um cancelado. Uma bola de neve maluca que se tornou uma espécie de surto coletivo.
Basta uma pessoa ser pega no flagra em suas atitudes ou escritos duvidosos publicados em redes sociais para que seja automaticamente condenada ao ostracismo sem chance de defesa em segunda instância. E a exposição é a primeira forma de mostrar que uma pessoa está errada, jogando-a à jaula dos leões famintos do Facebook, Twitter ou Instagram.
O cancelamento já furou a bolha das personalidades e chegou ao cidadão comum. Eu, você, seus pais, seus amigos, ninguém está imune ao cancelamento. Um comentário que você fez de forma torta para alguém pode ser copiado, gravado e postado, compartilhado, viralizado até que você seja absolutamente apedrejado por um erro que muitas vezes todo mundo que está te apedrejando também comete ou já cometeu um dia.
Antigamente, alguém que se sentia ofendido ou incomodado com algo que outro fez ou disse, resolvia na base da conversa.
Agora, expor a situação que você acredita ser errada é mostrar para todo mundo como você, uma pessoa de moral cristalizada, não pode aceitá-la. E aqueles que também se veem como um grãos-mestres da razão, arlequins dourados do jardim, vão na onda para fazerem parte do grupo dos "imunes ao erro".
Uma pizza que chega atrasada na sua casa é motivo pra você correr para a internet fazer um "bad review" e incitar o boicote ao restaurante. Uma foto de um amigo tendo uma atitude que você não considera certa é "printada" e postada para que os outros que nem conhecem o indivíduo corram fazer um linchamento virtual.

Se no ambiente comum o cancelamento parece dar super certo, na política ele se mostra falho. Vide Paulo Maluf, Collor, Sarney e tantas raposas velhas que vão e voltam ao poder mesmo após serem pegos no pulo!
Afinal, imagina que louco se alguém que faz comentários homofóbicos, incita a violência, não respeita leis sanitárias e elogia torturador fosse cancelado ao invés de se tornar presidente da república, não é mesmo?

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