A fina poeira do ar

Por Rubinho Vitti |
| Tempo de leitura: 3 min

Mariupol, Ucrânia, março de 2022.

Uma criança abre os olhos lentamente e, no meio da escuridão, vê um fio de sol que entra por uma fresta, desenhando uma cortina dourada de luz. Atrás dela, uma mulher já idosa, usando flores na cabeça e na estampa de suas vestes, olha para a criança e sorri.

Com as mãos em forma de pinça, aquela mulher alcança a bacia transbordante de trigo fresco, colhido na semana, e puxa um punhado do grão triturado, jogando porções para o alto como que em uma dança, no ritmo da canção folclórica que cantarolava feliz.

"Me leve neste barco com você\ Com alegria te levaria comigo\ Mas quem cuidará dos cisnes.."

Aos poucos, a criança percebeu naquela senhora a sua avó, que, entre pegar e jogar para cima o trigo, amassava uma extensa massa que logo se tornaria uma espécie de pão.

Aquele gesto deixava o lar todo tomado por aquela fina poeira branca, que se espalhava e desenhava imagens incríveis pelo ar, com a ajuda dos raios de sol. A criança logo avistou o barco da canção, o barqueiro alegre, cisnes voando e o lindo lago da região onde a família nasceu.

Ela olhava atentamente os gestos da matriarca da família e toda aquela cena, admirando a beleza do momento e respirando uma tradição de seu país que, sabe, no futuro levará consigo.

O forno à lenha já estava sendo preparado pela mãe, que também vestia trajes floridos tradicionais e ajudava no preparo da massa. A criança ficava cada vez mais admirada e se sentindo cada vez mais próxima e amada.

Na Ucrânia, fazer pão em casa é uma tradição milenar. O pão, junto com o sal, é um modo de dar as boas vindas para receber amigos e parentes. Para o povo daquela comunidade, o pão é o símbolo da vida. Na tradição pagã, ele também representa o deus Sol.

A iguaria é sempre preparada pelas mulheres ucranianas, matriarcas da família, utilizando o trigo plantado em suas terras.

Já o sal era um item raro há centenas de anos, retirado do Mar Negro desde a época dos ancestrais ucranianos. Casamentos, batizados, eventos folclóricos, festas em geral… o pão e o sal estão sempre presentes nas festividades da Ucrânia.

Com suas velhas e enrugadas mãos, a avó enforma a massa, que fica perfeitamente arredondada. Ela entrega o produto final para a mãe, que coloca no forno.

O pão vai recebendo o calor e já modificando sua forma. O sal é colocado na mesa, que logo receberá o pão, como manda a tradição para as boas-vindas.

Naquela antiga mesa de madeira, já empobrecida pelo tempo, algumas pitadas de farinha restam. A criança, atenta e muito curiosa, chega devagarinho e assopra o pó, que levanta voo, alcançando o último restinho de sol que ainda sai da frestinha da porta.

Nesse momento, como um grande estrondo, a porta se abre abruptamente, iluminando o ambiente como se o próprio sol estivesse entrado no local.

A criança se assusta, cai no chão e fica com o rosto branco pelo trigo que assoprara. A avó ri, faceira, a mãe olha bondosa para sua cria, com pena e preocupação. O pão, ainda em preparo, não ficaria pronto a tempo. Ainda não era a hora da recepção!

A criança abre os olhos e suspira profundamente. Não está mais no mesmo lugar. Ao seu redor, muitas pessoas correm para lá e para cá e o barulho é ensurdecedor. Alguém a vê e a carrega, assoprando a fuligem que cobre seu rosto.

Pelos braços do desconhecido, ela vê um teatro em chamas. Era ali onde ela, a mãe e a avó se escondiam. Onde achavam que poderiam se proteger. Não sabia ela nem mesmo de que.

Não há mais mãe, não há mais a avó, nem mesmo pão ou sal. Apenas escuridão, fogo e um tumulto com trilha sonora de gritos desesperados.  

O alguém que a segura corre em busca de abrigo. No chão por onde acaba de passar, meio que apagado e com destroços, ainda se lê a palavra "????".

"Crianças!"

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