A solidão nunca me apavorou. Soube, numa construção inevitável e necessária, aparar arestas, suportar injustiças, frustrar lágrimas e, recentemente, avaliar quanto de mim deixei entre gente mesquinha, despreparada e falsa. Agora, nesta fase não tão fácil como querem alguns, nem impossível de estar feliz como fazem parecer outros, conto dias, os que contemplo e encontro no primeiro instante da seda azul que me envolve a cada amanhecer e traz consigo nas flores da madrugada, a alegria que persiste.
Sinto que soube fugir, sem medo, das imposições sociais a que olhava com desdém e desprezo, em especial quando sugerem, em nome de Deus, tudo o que Sua Palavra não dita. Até quando este Espírito que nos conduz à felicidade, no modelo de Santo Agostinho, será objeto de aparente devoção e fé sem nenhum respeito e verdade, desfilando em igrejas onde pululam comportamentos falsos? Constatação que a vida em silêncio me oferece. Nenhum julgamento. Fácil, em tempos apocalípticos como os que estamos vivendo, sentir e avaliar.
Na minha juventude, especialmente, ao revoltar-me diante de um e outro cidadão destilando veneno em suas colunas de jornal interiorano, para, depois, rondar altares na celebração da Eucaristia. Fervilhava-me o espírito. Doía-me a alma.
Chegava a envergonhar-me ao deparar com espetáculos assim, em templos religiosos, e me recolhia ao silêncio, à reflexão e à aparente solidão onde, calada a voz, desfeito os nós, em silêncio, punha-me a nu na busca de regeneração e bênção.
Um de meus bons amigos, recolhido em Deus antes do que supúnhamos todos, costumava refirmar, olhando os seus, presentes em celebrações, a importância cada vez maior de “manter-se distante de todo comportamento hipócrita. Aceitar-se. Aceitar o outro. Respeitar, sobretudo. Deus não se dá bem com maquiagem. Lida melhor com rostos lavados e almas transparentes”.
Nos quatro cantos das casas onde vivi, em diferentes lugares do mundo onde pude estar, fiz desta companhia real e inigualável, contraponto para a solidão. Questão de escolha. Bom amigo dos livros de Machado de Assis, optei por distanciar-me da miséria humana, fácil de detectar-se, difícil de fugir del ae da desfaçatez, do make-up do dia.
Não entendo e não entenderei jamais o medo que alguns têm da solidão, dos retalhos impostos pelas diferenças na organização do mundo, da paz esculpida no silêncio. Jamais almocei só. Na casa, quando ninguém mais, além de mim estava, os anjos se acercavam da mesa e louvavam comigo o que o Senhor me oferecia para o instante. Num restaurante, num consultório médico, numa sala de espera não precisei de celulares ou garçons, de jornais ou de livros para companhia. Há, na suposta solidão, um sem números de luzes iluminando a alma.
Questão de escolha. Nada garante a riqueza da companhia, aquela. E tudo garante a companhia, Esta, que completamente desprovida do mal, se coloca por inteiro como Caminho, Verdade e Vida, sem dizer nada, apenas exercendo sua Luz e sua grandeza. Bendita autonomia alcançada!
Acertar o passo. Escapar das rédeas que freiam a vida da criança, de quem, à volta deles, acerca deles, acertando-lhes os passos, desenhando os caminhos e percorrendo, à frente, ou por trás, a caminhada. Bom seria sempre agir como arcanjo, ao lado, sem proteger em demasia. Ao lado. Sem procurar percursos seguros ou supostamente mais verdadeiros. Apenas fazer, caminhando, o caminho, com segurança e em paz. Sem relação de dependência nem de submissão.
Amizade é, sobretudo, luz para prosseguir, de forma mais autônoma, o próprio caminho que passa a contar, na relação de afeto, com absoluta independência, espelho para o respeito mútuo e constante revisão dos rascunhos que a vida elabora. Se assim se apresentar a amizade, tanto melhor deverá ser o amor, se não identificar-se com a tal miséria humana que a ninguém deve ser deixada, como ensinou Machado.
Procure reencontrar-se com amigos imaginários criados ao longo da infância. São de vital importância. Memórias que persistem. Na maturidade, outros destes amigos, invisíveis. Se não os encontra, se não sabe deles há muito tempo, basta percorrer o caminho que nos leva adentro de nós mesmos sentindo, observando, analisando.
Por que me obrigo a estas reflexões nesta manhã?
Tem sido assim, confesso, sempre que vejo o olhar descabido, o sorriso capcioso, desenhado de modo sarcástico, irônico, desleal, no movimento dos lábios e na imprecisão da fala de Vladimir Putin, rogando a Deus que se isole de si mesmo e do mundo para tentar entender-se. Não só ele, é claro.
Quantos seus adeptos!! Quantos, como ele, pensando, agindo, acreditando no mal como caminho de felicidade. A busca da felicidade, ensinou Agostinho de Hipona, é a razão de ser da vida. O presidente russo tem, neste desejo insano de destruição e morte, nesta ganância sem limites de ampliar terras como se vivesse ainda em tempos outros, seu jeito de ser feliz. Prova a cada dia esta verdade que, como alguns de seus amigos, nega.
Para os gregos, o prazer, no exercício das virtudes, era fonte de felicidade. Atualmente, a superficialidade, bens e riquezas materiais acumuladas, excessivo interesse na destruição do outro parece indicar o caminho para ser feliz.
Fico com Agostinho e os diálogos estabelecidos com sua mãe, seu irmão, seu filho, seus primos fazendo das certezas cristãs, vividas com verdade, à luz da palavra expectando a eclosão na mente humana. Que palavra? Felicidade, “saboreando, em plenitude, o que se tem agora.”
LEIA MAIS