Neles, o reino dos Céus.

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Quanta falta faz o vozerio da criançada, muitos, em idade pouca, miúdos ainda, esparramando, por onde passam, desejos, espontaneidade, vivacidade com a agudeza de suas ideias. Queria, neste calor saariano insuportável, a casa cheia deles, correndo de um lado para outro, em algazarras, revelando nos gestos e gritos os sonhos de Deus.
Pudesse ver meus meninos como os vi um dia, aos dois – quando eram apenas dois – soltos, correndo pelos jardins de casa, em Manágua, entre árvores e folhagens, num país que ansiava por democracia e, agora, por ter acreditado, mergulhou na incerteza. Que pena!
Os meus pequenos, nicaraguenses que são, fugiam da farsa imposta por Teresa, num charabiá inacabável, do tatibitate aos gestos, da risadagem aos gritos. Nem o Deus Menino, inteligente e vivaz como ensina a Bíblia, entenderia. Mas era lindo! Até mesmo a falação interminável do menor, no despontar da noite, diante da casa, com interlocutor imaginário, fazia com que a lua parecesse imóvel, observando o diálogo que não se ouvia.
Teresa, serviçal querida, a que deveria cuidar, no cair da tarde, calor equinocial semelhante a este que vivemos agora, se punha por trás deles, lambuzados de sorvetes, para atender à provocaçãoe soltar, com mangueira longa, mas feroz, água por todos os lados, para uma brincadeira sem fim. A farra da água!
Num entusiasmo sem conta, desafiavam a desventurada a que os perseguisse, correndo incessantemente, a ponto de perder forças e energia. Era lindo ver, mas me preocupava pensando como agiria, em casa, já sem igual entusiasmo,para repetir a brincadeira com suas crianças. Quanta alegria em tanto alvoroço!E pensava: a destemperança do mundo, diferente em tudo e desigual entre tantos. Teresa, lembro-me bem, entrava na folia como se tivesse a mesma idade, divertindo-se como eles, esquecida da pobreza em que vivia ao lado de suas três crianças.
Do piso superior da casa, via aquilo tudo e reconhecendo que o tempo, com voracidade, faria desaparecer esta temporada lúdica dos meus, deixando na lembrança desejo e saudade, sonhava jogá-los todos para dentro de uma crônica, como faço agora, para não esquecer jamais. As frases incompletas, a repetição de gestos, o sorriso constante e a deliciosa atormentação sobre Teresa, provocando, chamando a que corresse para apanhá-los na aventura de alegria e prazer.
Um mundo com crianças, sejam quais forem, como forem, na idade que tiverem, preservando por razões distintas a pureza que as caracteriza, o olhar e o sorriso sem maldade, o coração liberto, deixarão por onde passam o leite espiritual que as alimenta.
Por sorte, me chegou o terceiro. Se não sabem, conto. Verdadeiramente um presente de Deus. Depois de pesados desafios, José Antonio nos contemplou renovação de vida, de alegria, do prazer de ter, outra vez, tanto em casa deles quanto na minha, a alegria da infância brotando como brota a flor.
Esquecer como a descoberta da lua e todos os questionamentos impostos na mesa do café ao ver o queijo e olhar nele, voltar-se para o alto e proclamar em espanhol mal falado que buscava por ela, “laluna”. Já com dois ou três anos, ao perguntar-lhe de quem era o desenho de seu rosto, ouvir como resposta: “Dios”. Melhor ao descobrir que não era papai, meu nome, como me chamava, mas José Antonio como o dele. “Somos gemelos?” obrigando-me a buscar crianças gêmeas para que entendesse o sentido de um parto dobrado.
Isso tudo para saber que numa próxima crônica devo contar a facilidade que encontrou em Quincas, meu cachorrinho Dachshund, bravo com todos, menos com ele, para aprender a engatinhar antes do tempo. Enroscado a seu rabo movia sua mãozinha esquerda e vencia distâncias curtas para o olhar e o sorriso dos assistentes, mas longas para seus poucos meses.
É a magia da infância ou até mesmo dos já adultos que, por algum motivo, trazem consigo a persistência da pureza divina em si, essencial, para sempre. Só mesmo os bem-aventurados entenderão bem que na diferença se estabelece a grandeza destes seres.
Felipe, meu amigo, ao encontrar-se comigo, me abraça demoradamente, não sem determinar, com a mão direita, a distância imposta ao gesto. Depois, repetir solenemente a redução de meu nome: Zé! Zé! No som que emite, a certeza de que não só me incluo no seu breve vocabulário, mas no seu afeto. Registro nítido de que faço parte de seu universo. Dá-me, ao compreender ou sentir estas ações possibilidade de vencer minhas limitações humanas.
Nele, na alvura da sua pele, na beleza de seu rosto, no toque de seu coração, na pureza de sua alma, Deus presente, com todos os seus mistérios, igualmente incompreensíveis para mim e para todos, mas presentes nele, na sua alma, no seu olhar. Em Deus, posso encontrar dentro dele, todos os seus, não só refletidos na sua aparência física, mas no seu coração.
Recebo em minha casa, Antonio, portador de igual transtorno. Sua presença amiga traz, para o ambiente em que está, uma aura de paz e encantamento. Como foi bom o dia em que, conosco, pouco ou nada conversando, nos enriqueceu com sua energia e seu olhar distante, próximo de tudo o que lhe pareceu significativo. Ao aceno da avó e da mãe, num gesto e num beijo, ditou lição para o mundo.

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