À digestão bem feita de São Paulo!

Por David Chagas | 20/02/2022 | Tempo de leitura: 4 min

Mário,
tarde, quando te escrevo. Ando, estes dias todos, envolto nas lembranças de tuas peripécias. Não imaginas, bem sei, que até mesmo de tuas viagens pelo Norte, Nordeste do país, é assunto de conversa nos dias de hoje. Bom demais! Ah, não fossem estes périplos teus, quanto se teria perdido! Um destes documentários a que assisto, um reisado que encontraste no Maranhão, deu o tom. Procurei nos escritos de Drummond algum comentário e pude sentir o entusiasmo com que se dirigiu a ti nesta tua descoberta do Brasil.
Sinto-me filho teu quando conheço tuas reações a estes achados, em especial o linguajar, o cancioneiro, as encenações espontâneas, a aparência física das personagens que encontravas nas andanças todas. Quanto disto tenho! Como gosto destes brasileiros como nós! Aborreço-me com quem, menos avisado, menos nacionalista (nacionalismo como queriam os modernistas e como acredito seja adequado), ignora ou despreza.
Te conto, ainda, Mário, certo de sentires o que te digo, que no mesmo documentário, apresentaram as modinhas que recolheste, algumas delas, tu, ao piano! Depois, no mesmo canal televisivo (há esta vantagem agora. Imagino que saibas a quanto andamos), seguiu-se um curta metragem com Menotti del Picchia. Feito em 1972, Menotti falou de seus quadros e se deteve um instante no retrato feito por ele de sua primeira esposa motivo para conversações sobre a Geração de 22 e, claro, sobre ti, como eras, tuas preocupações na preservação do nosso.
Emocionante. Contou coisas o poeta que nem imaginas. Ou terá tido, na Luz, oportunidade de saber? Quando me pergunto destas coisas na solitude em que me encontro, -menos entendo as notícias daí. Sábio, o Senhor da Vida preserva o incompreensível, não para confundir, mas para imaginarmos, acreditando ou não nos múltiplos mistérios. Dá-nos a oportunidade de opção.
“Era uma esperança alada,/ Não foi hoje mas será amanhã,/ Há de ter algum caminho/ Raio de sol promessa olhar/ As noites graves do amor/ O luar a aurora o amor…que sei!
Na solidão, solitude,/ Na solidão entrei/
Na solidão perdi-me…”
Podes entender a razão de sentir-me, vez por outra, (perdoa-me o atrevimento) um pouco Oswald, muito Mário, um tanto Menotti. Não me chateio se o leitor me achar petulante ou pretensioso ou pouco se interessar por isso. Ou supor que perco meu tempo escrevendo ao relatar acontecimento primordial de cem anos atrás. Queria tanto valer-me da data. Não poderia deixar passar a febre que me atormentou durante certo tempo já que, hoje, não disponho de salas de aula nem de alunos para conversar sobre a
Semana e seus resultados.
Houvesse, no país, outro comando com informação adequada e cultura, nenhum brasileiro deveria escapar destes encontros apresentados em canais abertos de televisão, reportagens cuidadas em diferentes canais, comentários e artigos publicados em, revistas e jornais, nas “lives” celebrando o fato.
Manuel Bandeira, ao interromper jornalista que tentava entrevistá-lo a respeito deste tema num dos muitos fevereiros que acompanhou comemorando estas datas, foi profético. Cansado de entrevistas solicitando avaliação da Semana de Arte Moderna, recomendou esperar pelo centenário para saber se vingara ou não o ideal revolucionário dos líderes modernistas e, com alguma irritação, concluiu valendo-se de seu poema: “Meu pai foi à guerra!/ - Não foi! – Foi! – Não foi!”
Pois bem, chegamos ao centenário e respiramos, desde o início do ano de 2022, o espírito da Modernidade imposta pelo festival. Os cânones da arte, no país, corretamente sacudidos naquele movimento, deram resultado. Era um novo tempo que desejava impor-se. Tomara, em honra disto, neste ano de mudanças políticas, ocorra o mesmo.
Decretemos, agora, pelo voto, já que não há líderes como aqueles que se aventurem em tudo, nova temporada, com mudanças em favor da vida civilizada. Se nos unirmos, teremos desafetos, como tiveram eles. Faltam-nos capitães capazes de capitanear com elegância, inteligência e respeito o novo, que se sobreponha ao sapo boi que berra.
Haveremos de conseguir em honra da Semana que nos projetou ao mundo, dando espaço à renovação e trazendo para nosso aplauso além dos líderes dela, Villa-Lobos, Portinari, Anita Malfatti, aviltada que fora pelos sapos, tanoeiros aguados, Tarsila do Amaral, Carlos Drummond e toda a geração de 1930 e de 1945, em especial, Guimarães Rosa. Ao escandalizar puristas, mesclando música de orquestra e tambores, instrumentos populares de congado e folhas de zinco, poemas sem métrica e rima, uso de expressões populares sem tirar da obra sua grandeza e beleza, os modernistas davam à produção cultural brasileira, Modernidade, visão de futuro notável e modelo revolucionário transformador em benefício da Cultura Brasileira. De Norte a Sul, deglutindo e processando outras culturas, fomos aprendendo que “só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
É o que te tenho a dizer, Mestre, do que recolho de tua extraordinária experiência e notável ação, da tua Verdade e do Orgulho que sinto ao celebrar o Teu Ideal. Comovido por tua herança bendita e por São Paulo, despeço-me de ti na enorme esperança de encontrar-te.

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