Amizade, matéria de salvação

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Alguém me ajuda a entender o rebuliço da alma? Quem se atreve? quem provoca? Confusão de lembranças, agradáveis, algumas, doídas outras tantas, datas que bem poderiam ter ficado esquecidas da alma quando, manchada e triste.
Em meio a isso, os jornais obrigam a ler o que não gostaríamos. Notícias devastadoras. Amigos que se despedem. Flores que murcham antes do entardecer, sem tempo a que todos a reconheçam em sua beleza.
Não sabia? Viver é isso.
Dias há que, ao amanhecer, no abrir da janela, o céu, em azul posto, como quê, envolve, acoberta, espia. Acarinha de longe. Sem nenhum gesto explícito. Tão exageradamente belo que, incontido, aquece. Azul. Azul.
Em outros dias, carregado de nuvens pesadas, copia o escritor e ensina: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Não sabia? Viver é isso. Assim. Deste modo.
Se faltar coragem, desvanece. Se esvai. Cria, no vazio, um despenhadeiro. A ansiedade desperta o medo que, desmesurado, impede decisões claras, medidas adequadas. Bom seria pensar. Como? Encorajar-se de algum modo, recriar metas, determinar objetivo, enfrentar. No vaivém, a vida quer mesmo é que sejamos intrépidos.
Alma em burburinho? A cabeça, entupida de ideias convulsas, procura saída para tanto pensar? Confusão sem medida. Não tente fugir. De nada adianta. É preciso aprumar-se para encontrar solução. Sacudir a cachimônia de tal modo para pôr ordem nisto.
Separar joio e trigo pode parecer fácil. Não é. Se preferir, faça como se estivesse a catar feijão deitando longe o que não serve. Acumular? Só o que vale a pena.
Dia destes, na atormentação, procurei pela paz. Por onde, meu Deus! É dele a paz que procuro, única capaz de destruir o espírito obsedante. O Maldito. Não conhece? Não se envergonhe. Não há quem não o conheça. Se achega como quem nada quer, entranhado num personagem escolhido a dedo, um vizinho, uma dona espinhenta, um bicho do mato, um bandido, nem queira Deus em quem mais, porque tantos dividem com ele, de diferentes formas, sua malignidade.
Conhecesse Cecília, este anjo que Deus soprou sobre a terra, entenderia como o bem sabe, em silêncio, vencer o danoso. Dela, de Cecília, me veio a bênção necessária em dia tormentoso. De forma singela, silenciosa, enviou-me por uma destas redes sociais, mensagem sem palavras, registro de seu olhar que capta, num cenário de pôr de sol ou no orvalhar da alvorada ou num pássaro solitário à procura do ninho ou numa florzinha junto à pedra, na calçada, o bem que esconjura o que maltrata e dói.
Me conhecesse melhor, Cecília talvez não acertasse tanto no que me envia, quase sempre sem dizer nada. Imagem tão somente. Nesta tarde soube encontrar lírio, imagine, tão lindo que, para não se perder em tamanha beleza, exigiu ser admirado no tempo que lhe coube. Um só dia.
Sua cor me arrebatou. Quando deito meu olhar sobre algo desta cor me sinto de tal modo abduzido pelo brilho da cor, por sua luz, pelo amarelo, que me esqueço do correr do tempo.
Magia da cor. Basta-me um risco em ovo, açafrão ou ouro, para firmar-me o espírito e superar tudo o que possa ser moralmente difícil.
Decifra o enigma?
Passei horas a admirar o lírio que Cecília fotografou no jardim de sua mãe. Com ele pude entender o céu da noite. Azul-marinho. Nele gotas de amarelo a que chamam estrelas, dando-lhe vida. O amarelo liberta a escuridão como o lírio de Cecília restaura do abatimento moral, da tristeza, da dor.
Neste vaivém da vida, no pulsar do tempo sobre a Terra, no lírio de um só dia dando ânimo à alma, o pôr-do-sol soube levar consigo, amiga querida no instante do Ângelus.
Maria, coberta de Luz, encaixotou seus bordados, lindos, lindos, lazer encontrado para amenizar suas dores físicas e oferecer seus préstimos a instituições que se ocupam de amenizar sofrimentos. Maria ali, ao lado do marido, em seu trabalho diário, se sentava para desenhar com agulha e linha seus sonhos de beleza e cor.
Não só por isso meu afeto por ela. Quando podia estar em dedos de prosa, a seu lado, encantava-me ver como reagia ao mal que fez a vida nas malcriações do dia, oferecendo sorriso e olhar iluminados.
Maria despediu-se no mesmo dia, tantos anos passados, em que minha mãe encantou-se. Não foi vã esta coincidência. Queria dizer-me: “Não me esqueça. Ao pensar em sua mãe, pense em mim. Estamos juntas sob a mesma Luz.”
Chacoalhar de alegria e tristeza, de chegança e partida. Há quem ofereça num lírio, cuja existência dura um dia, alegria para uma vida toda. Há quem se despeça no primeiro aceno de Deus. É para o que fomos feitos: uma canção, uma palavra, uma lágrima.
Assim, para entender que nascemos para, juntos, sermos matéria de salvação. Pela amizade. Pelo amor.

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