Te peço perdão, Moïse!

Por David Chagas | 06/02/2022 | Tempo de leitura: 4 min

“Se todo animal inspira ternura, o que houve com os homens?”. Não te sei responder. A ti, só te posso pedir perdão já que os teus disseram entendero Brasil, a Pátria que amo funda e profundamente, como grande mãe, braços abertos a acolher a tantos e todos. Se bem pensavas assim, sinto-me, por dever, sentir-me teu irmão a conviver contigo, como todos os meus conterrâneos deveriam sentir-se. A pátria, no entanto, meu caro, perdeu-se, não por culpa dela, mas de alguns, que, para ela, estabeleceram diretrizes incompatíveis com o interesse da grande maioria e com nosso caráter nacional, esquecendo valores que, a todo custo, dentre outras tantas, a pátria queria preservados. Sem falar, é claro, em interesses exageradamente pessoais que acabaram por oferecer a alguns destes, oportunidade para usufruírem do bem comum, em detrimento do povo.
Quanto te peço perdão! Envergonhado, penso no que te derrubou, te imobilizou, te amarrou braços e pernas e pescoço e celebrou teu calvário doloroso para depois,feito isto, dizer ao policial civil que conduz o inquérito, por sorte, com bom senso e objetividade, “ter sua consciência tranquila”.
Não te acabrunhes, Moïse! É o que sabe falar. Não pensa. Pensasse, seria outra a conduta. Sentir? Ninguém pode perder o que não teve nem recebeuherança bendita que forjasse o caráter e lhe desse condição cidadã.
Por certo não é de todo culpado, mas adulto, poderia ao menos ter adquirido alguma lucidez.Bem verdade, Moïse, que superproteção e ternura em demasia são maléficas, muitas vezes,mas deixar de lado, na infância sobretudo, que estas atitudes alimentem a formação, traz prejuízos maiores.
Peço-te perdão, a ti e aos teus, pela demora em ouvires, sob a Luz do Espírito de Deus, no estado de graça em que te encontras agora, a palavra do governador do Estado do Rio, quem deveria ter sido o primeiro a estar onde te subjugaram e a primeira voz a proclamar sua vergonha emsaber que no seu território acontecem coisas como esta porque falta a ação efetiva e correta do Estado. Também o prefeito falhou, como se vivesse a expectativa do que faria o governador para só então apresentar condolências diante da barbárie a que te submeteram.
O mundo, no entanto, Moïse, condoído, estampou tua crucificação por seus meios de comunicação, em edições diárias, cobrando justiça efetiva. Não te prometo que assim seja. Brasileiro, reconheço as falhas que rondam esta instituição, já que fui, também, vítima disto. Há, no entanto, mobilização popular, tentando redimir minimamente o mal cometido.
Pensar que vieste de longes terras com esperança de, sem esconder-se, sobreviver a um mundo injusto e pecaminoso numa terra que divulga imagem de respeito às diferenças, desprovida de preconceitos, bem-aventurança e bondade, sem que assim seja.
Se te recordasses da dívida altíssima que temos com a África, em especial com o povo congolês, de onde vieram milhares de homens e mulheresduramente escravizados aqui, talvez pudesses imaginar que aqui não serias “livre filho das montanhas/ a ir-te bem satisfeito,/ da camisa, aberto o peito,/ pés descalços, braços nus”. Por certo, falou mais alto saber encontrar aquio mais africano dos países fora da África e estar livre de perseguições étnicas e tribais, vivendo em paz e feliz.
Perdão, Moïse, perdão!
Reconhecer isto, amplia mais nossa responsabilidade sobre ti e os teus e tantos outros africanos aqui refugiados, certamente porque supunham que a propalada democracia racial brasileira fosse verdadeira.
O bem que tua morte causa, se assim posso dizer-te agora na condição em que te encontras iluminando tudo, é que se agiganta nosso sentimento de dor porque permite refletir sobre o retrocesso civilizável por que passa a sociedade brasileira em diversos aspectos, onde grita aos olhos e à consciência, a cultura do linchamento, presente a cada dia. Teu caso não foi isolado. Ganhou dimensões porque, trabalhador, procuravas resolver direitos trabalhistas teus e foste recebido com hostilidade pelos prepostos que, por certo, invejavam tua elegância, tua forma de ser com os outros, princípios facilmente reconhecidos.
A equipe do PARES Caritas RJ, que te viu crescer e integrar nossa terra aonde chegou ainda criança com teus pais e irmãos, reconhecidos como refugiados por nosso país, autentica o que soube a teu respeito e promete acompanhar passo a passo o caso para que haja esclarecimento rápido e correto.
Te peço, com insistência, Moïse, que nos perdoe a todos. Reconheças que muitas vozes se erguem, em especial, a da Ordem dos Advogados do Brasil, a de alguns artistas e apresentadores de telejornais, principalmente a de cidadãos comuns, como eu, pela tua dor. Não prestes muita atenção nos supostamente poderosos. A eles caberá outro tipo de justiça que virá, estou certo, no tempo devido.
Donde estás, bem podes chamar a atenção da Luz para a escuridão a encobrir estes desajustes todos, já difundidos junto a Deus por Dulce dos Pobres e dos Pretos, por Elza Soares, por dr. Mindlin, exemplo de vida e de justiça, por Paulo Gustavo, e, agora, duramente confirmados por ti.

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