De quem são estas chinelas tão grandes?

Por David Chagas | 16/01/2022 | Tempo de leitura: 4 min

Quando os visitei em Fortaleza, tinha de três para quatro anos. Cheguei pela noite com Célia Maria, minha irmã, excelente companheira de viagem, levados que fomos por Miriam, amiga querida, prima de sua mãe. Vínhamos da ilha de São Luís, no Maranhão, onde vivemos aventuras amalucadas em busca de Alcântara e suas ruínas históricas. O mar, aparentemente tranquilo, convidava à travessia dando ao turista desejo ainda maior de chegar ao sítio histórico. O céu, no entanto, pouco ou nada recomendava a viagem. Durante o percurso, já em alto mar, um vento forte decidiu mostrar-se com vigor absoluto. Se alísio, se sazonal, não sei dizer, mas com velocidade e violência jogava tudo e todos de um lado a outro. O marinheiro içou velas para dar sustentação aos motores e recomendava coletes. Misturavam-se gritos, conversas alarmantes, choros. Os turistas, amedrontados. Os locais, certamente acostumados a intempéries no mar, tranquilizavam crianças. Esta aventura por Alcântara, a cidadezinha que se perdeu no tempo preparada que fora pela aristocracia maranhense para visita, jamais havida, do Segundo Pedro, parecia transformar-se em viagem sem o fim desejado.
Chagamos. Saltar ao mar, à chegada. O lugarejo calmo e pacato como sabe ser, dava-nos a segurança de estar em terra firme, agora, no continente, guardando nas ruínas da cidade, indícios de história que não se concluiu. Andar pelas ruas irregulares permite imaginar, supor, sonhar. Voltar de Alcântara e assentar pé na Ilha de São Luís e agradecer a viagem que nos deu a certeza de história que, por seu trajeto, não carece ser refeita.
Dia seguinte, Fortaleza. Na belíssima capital do Ceará de anos atrás, além de todos os passeios que foram feitos, o prazer de então foi hospedar-se em casa de Rosalia Schuler e Joaquim Honório Neto, ele, empresário de destaque na capital cearense. Lá, na manhã do dia seguinte, despertei com uma voz infantil indagando de quem seriam chinelas tão grandes. Encantado com o garoto perguntador, vivaz, inteligente, festivo, jamais imaginei reencontrá-lo médico patologista pela Universidade de São Paulo, de volta ao Ceará, onde iniciou pesquisa em torno de sua família materna para contar a origem dos Schuler em Pernambuco, no século XIX.
Amigo que sou dos filhos de Maria da Graça Schuler de Melo, com quem aprendi a amar o Recife, trazendo-o para dentro de mim, fiz do livro de Rodrigo Schuler uma referência a mais de leitura onde é possível reconhecer trabalho de investigação incansável entre aparentados, em jornais, revistas, fotos, ruas da cidade, para organizar história de família desta dimensão e com notável destaque no nordeste brasileiro, em especial no Estado de Pernambuco.
Quando estive com o médico e literato Pedro Nava, sem dúvida, um dos maiores memorialistas que o Brasil conheceu, contou-me dos prazeres e desventuras de escrever remexendo memórias. Já experimentei iguais dissabores. Há quem não entenda o valor de contar, esmiuçando vidas que possam ter contribuído de algum modo para que as experiências passadas permanecessem, por boas ou más razões, vivas.
Fui a sua casa na Glória, num residencial elegante, onde ocupava dois dos cinco andares. Tudo na casa de Pedro Nava era voltado para conservar e lembrar estados de consciência passados e estivesse associado aos mesmos. Os quadros na parede, muito bonitos, muitos deles preservando lembranças da infância e da juventude mineiras. Os sonetos, o piano na sala o jeito adorável de falar e contar histórias. Admirado olhava o escritor avançado em anos, com apreço único, observando sua alvura, seu jeito de velho e querido avô, seus cabelos brancos, suas orelhas graúdas, como se fora um avô querido.
Rodrigo Schuler traz memórias de família. Dos seus, ouviu histórias, fez pesquisas e delas soube tirar proveito que resultou neste livro agradável que me fez saber de amigos e de outros tantos que nem conheço, mas sei terem em suas vidas, motivos que honram a tradição dos Schuler e seu nome.
A sensação é reversa. Rodrigo ao falar-me do livro, primeiro me traz o garoto adorável daquela manhã cearense quando, espantado, vendo minhas chinelas, perguntou a mãe ao passar pelo aposento em que me encontrava: “de quem seriam chinelas tão grandes?” Acordei com a indagação e fiquei afeiçoado ao menino. Distante do Brasil por longos anos, quando me encontrava com um dos Schuler, jamais deixei de perguntar dele, referindo-me ao garoto não pelo nome, mas pela indagação feita.
Quando veio para São Paulo a fim de preparar-se com máxima competência na especialização escolhida, tive vontade de reencontrá-lo. Isso, no entanto, só foi possível agora quando, já em segundas núpcias, pai de três filhos, trocou algumas conversas comigo sobre o livro que escrevia. Enviou-me mensagens por redes sociais e deixou com a prima exemplar de seu livro com simpática dedicatória, chamando-me, claro, amigo das chinelas grandes.

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