Ano Novo. Novo?

Por David Chagas | 09/01/2022 | Tempo de leitura: 5 min

Janeiros chuvosos! Trazem-me paz, não sei bem se na carranca do céu, aborrecido, como se procurasse pelo azul, ou nas aves que voltam ao ninho no final da tarde como se pouco ou nada se importassem com o peso das nuvens. Agora, quando lhes escrevo, incomoda-me supor a expectativa do leitor quanto ao texto. Obrigo-me a escrever para muitos, de forma mais leve, sem explorar tanto o que gostaria. Por isso observo a natureza. Quanto valeria ser como ela, ao mesmo tempo simples, ao mesmo tempo bela!
Para mim, só a natureza, sabe espelhar o tempo que tenho vivido desde que a peste tomou conta do mundo em busca de espíritos iguais a ela, que a acolhessem, negando qualquer possibilidade de fim ou de cura. No jardim que vislumbro, no céu que procuro, no surgir de estrelas ao fim da tarde, tudo parece ser ao mesmo tempo simples e ao mesmo tempo inigualável, contrariando o mal que a peste faz ao mundo, com seus iguais humanos.
Daí que as notícias que me chegam, fazendo-me cansar de ouvi-las, como se soubessemtão somente alertar para a agonia do tempo, sem ter, como certo, este acontecimento. Incomodam por trazerem em si um espetáculo de horror misturando tragédias seguidas, provocadas por uma natureza exausta de erros humanos, milhões de mortes resultantes da peste que se instalou há dois anos e ganhou, no nome, número que determina seu começo, a fala insuportável dos desgarrados de valores humanos, distantes de princípios da moral e desviados do bem comum, soltos pelo caminho como ervas daninhas no jardim de flores.
Enquanto redijo, observo fora, pela vidraça marcada pela chuva, o céu. É o reflexo das muitas sensações deste momento. Nada de pessimismo, embora tivesse razão para isso. É tão somente uma tentativa de entender como pode haver quem não observe com alguma clareza tudo o que vai dando outro contorno ao mundo, sem vasculhar com igual correção sua própria alma.
A velocidade da informação traz-me notícia de miséria e fome. De violência e horror. De recordes de infecção provocados por diversas variantes docorona vírus. Ainda assim, há quem rejeite a vacina, negue o valor do socorro que tem dado à vida, propague como verdade esta negação,alicerçada no revés da ciência que tantas e tão boas pesquisas realiza. Pior: há quem aplauda isso.
Também encontro na mídia o relato da fome. Crianças e velhos, as duas pontas da vida, à míngua de víveres, numa miséria sem fim. Bocas, como pássaros indefesos, à espera de um alimento qualquer.
O mesmo meio intermediário de informação oferece a expressão grotesca dos que se fartam em banquetesabundantes e desnecessários, onde sobeja luxo e riqueza. Não satisfeitos em noticiar, é preciso exibir fotos com seus utensílios requintados, recheados de alimentos adornados com especiarias nobres, sobre toalhas de renda e seda onde repousam pratos elegantes, saborosos, a serem harmonizados com vinhos e outras tantas bebidas de valor incalculável.
Você, por certo, supunha que amanhecesse no domingoem outro ritmo e na busca de sabores como estes. Enfim, Ano Novo. Novo? É que os ventos que sopram hoje, no sul do país, trazem consigo tempestades, encharcando solo, destruindo encostas, derrubando casas, matando, chicoteiam minha consciência de tal forma que me muito mais do que se maltratassem minha pele.
Deparo-me com o Tocantins, o rio, alagado em todo o Bico de Papagaio, este fecho no mapa, que lhe dá elegância e certa altivez. A pequena cidade do Maranhão aonde chega o rio, engolida pelas águas. Quisera, mas não posso escrever sobre outra coisa. O cotidiano me obriga aconviver com isso, observar isso, sofrer pelo que me toca fundo neste tempo em que, ofertado à vida, tenho encontrado sempre igual cenário. Obrigo-me a aliviar-me a alma como o céu à procura do azul em tardes e noites como estas, embrulhadas em nuvens de chumbo.
Sigamos, pois, nosso destino. Há, por sorte, diante de meus olhos, quem cuide de seu jardim, regue as plantas e ajeite suas mudas de azaleias e de hortênsias para que se alimentem de seu amor e da terra que lhes é dada, alimentando aexpectativa da flor. Ali, à sombra de árvores, clama para que a luz do sol vaze por suas folhas, entre seus galhos, renovandoa vida. Sinto, na cena, a esperança do novo, do Ano Novo, da vida nova, do desejo incontido de rever o texto para mudá-lo todo em razão da lição agora aprendida.
As plantas naquele pedaço de chão, verdes, sorrindo a quem, nelas, encontra repouso para a alma e luz para o olhar, me faz entender que “a realidade/ sempre é mais ou menos/ do que nós queremos./ Só nós somos sempre/ iguais a nós próprios”.
Pode entender-me na extensão de cada frase? Chego até você com o desejo que tenho? Consigo, ao menos, chamá-lo a ajudar-me a refletir sobre a necessidade – também sua – da descoberta da verdade, não como a concebemos ou como fica fácil entender, mas a que nos revele a nós mesmos e nos faça reconhecidos pelo outro como ser de nosso próprio sujeito?
A menina sobre o canteiro abre cavoucos, revira a terra e a joga sobre as pequenas raízes da flor. O que faço agora? Cavucar a alma. Revolver tudo, ver brotar, de algum modo e por alguma razão a esperança tratando de abrir frestas para que não haja sombra e o sol apareça afastando as nuvens que possam turvar os olhos e a vida.
Nada é maior e mais nobre que viver simplesmente. “Deixar a dor nas aras como ex-voto aos deuses”.

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