Com a alma exposta.

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Aquele moleque malconduzido onde vive? Não é moleque? Como? Já conta mais de trinta anos. E o que significa contar anos se o comportamento foge à regra. Molequeia a mais não poder na forma de portar-se. Inadaptado ao ambiente revela em cada gesto o desajuste. Gira em torno de si mesmo como peru à véspera da festa depois de engolir, porque lhe dão, é claro, dois ou três goles de cachaça. À pobre ave, sem escolha, mata-se. A um indivíduo assim, fontanela toda descomposta, juízo e caráter enviesados, faz-se o quê?
Pois fui obrigado a assistir a uma cena destas mesmo sem querer. Que loucura! Não a cena. O danado. Gênio do mal incorporado, o dito cujo falava e falava sem parar. Tudo o que não devia. Não conheço tais crenças, mas, suponho , tivesse o capiroto dentro dele. Ou será assim tão ruim?.
Havia, não nego, um lado divertido: entrava e saía de determinado recinto vociferando muito e avermelhado gritava e gritava suas asneiras para, ao final, gritar qual era sua profissão. Se te conto? Não. Vá observando detalhes e há de saber. Machado, em sua obra, antes de Freud e Young, ao abordar tema de igual natureza, chamava alma.
Cruz credo! comenta o ouvinte. Católico como sou, alma para mim é coisa séria. Princípio de vida. Sopro original.
Impossível aqui filosofar. Ninguém entra em conversa interessado no desfecho. Os espectadores querem mesmo detalhes sobre as tamancas usadas pelo cidadão. Caiu delas ou não, pergunta uma senhora?
A vítima do descalabro deveria chamar pelo Conselho interditando tudo, diploma, registro, tudo, recomendando que procure por profissionais que lidem com a natureza moral e emocional do outro, acertando-lhe os ponteiros. Que seja impedido do exercício da propalada profissão a bem dos que o procurem.
Terá bom senso? Ou teve, no episódio, apoio de alguém próximo dele, que o fez surtar, e exigiu provar, no grito, o gênero que o qualifica ao grupo semelhante. Me parece muito pelo que me conta àquele tipo que afirma trocar o chefe se este o incomoda. E replica: caso o diretor não atenda, troca o diretor. E se não encontrar eco junto deste, aí, então, troca o ministro. Ou coisa que o valha se me equivoco na citação. Sei que o ministro dançou.
Professor que me ouve diz ver em sua escola situação semelhante. A diretora, com iguais características do protagonista desta história grita com os coordenadores. Estes, com os professores, com os funcionários, com o cuidador de alunos. O último na hierarquia, se vir gato passeando pelo pátio do colégio não hesita: chuta-o, fechando a cadeia de absurdos.
Ao relato, emprestei dois dedos de riso, espanto, indignação e nenhum comentário. Imaginei, num primeiro momento, piada, cujo desfecho demora a aparecer. Ou mentira. Neste tempo em que vivemos entre fato e fake fica difícil saber o que de fato é ou não conto verdadeiro.
Jornalista que sou, anotei o causo e tratei de pensar numa forma jocosa para escrever, dando a meu leitor a oportunidade de, lendo, rir e, precisando de profissional com formação idêntica, fuja, caso surte também.
Pus-me à frente do contador para ter a oportunidade de ver a imitação e os trejeitos alucinados que emprestava à repetição do palavreado e dos gestos. De pronto, repassei a memória e encontrei ali guardada orientação precisa do médico e escritor Flávio Gikovate. Antes, no entanto, de manifestar-me, procurei explicação para o caso.
Não seria doente, portador de psicose endógena, com sintomas claros de dissociação da ação e o pensamento? Ou labilidade afetiva? Como estabelecer psicogênese que permita visualizar o que teria motivado tanta bizarrice?
Em meio a este imbróglio, revelador de estado de confusão mental associado, indiscutivelmente, à notória falta de educação do protagonista, risível no palavreado de que se valeu, em especial quando, aos gritos, seu maior interesse era divulgar sua formação universitária, pedi licença para citar o Gikovate quando, ensinando, afirmava que a maturidade emocional “se caracteriza pelo atingimento de um estado evolutivo no qual nos tornamos mais competentes para lidar com as dificuldades da vida e, por isso mesmo, com maior disponibilidade para usufruir de seus aspectos lúdicos e agradáveis”.
“Talvez a principal característica da pessoa madura esteja relacionada com o desenvolvimento de uma boa tolerância às inevitáveis frustrações e contrariedades a que todos nós estamos sujeitos. Tolerar bem frustrações não significa não sofrer com elas e muito menos não tratar de evitá-las. A boa tolerância às dores da vida implica certa docilidade, capacidade de absorver os golpes e mais ou menos rapidamente se livrar da tristeza ou ressentimento que possa ter sido causado por aquilo que nos contrariou.”
Perfeito, não lhe parece.
Volto ao conto.
O interlocutor, já cansado da interpretação, quis interromper. Voz feminina: desceu ou não das tamancas o alucinado? Que nada!, responde. Rodou a baiana por longos minutos insistindo em rodopiar babados e rendas, sem esquecer, a cada rodopio, de proclamar a profissão escolhida, cuidador de alma humana que é. Resolver como, se o cidadão mal consegue reconhecer seu próprio desequilíbrio, psicólogo que se anuncia?
Pobre moço! Não haverá luz capaz de despertar sua consciência? Não quero apiedar-me de seu desequilíbrio. Queria, apenas que tudo isso servisse ao menos para que não quebrasse tantas rochas fazendo voar faíscas e lascas para todos os lados, ferindo a quem pouco ou nada tem a ver com sua falta de domínio sobre o mundo.

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