Meu sangue latino

Por David Chagas | 12/12/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Bem poderia escrever em espanhol. Nisso registraria meu orgulho de falar do sangue latino a nos correr nas veias e sugerir pensar. No vale, na montanha, nos pampas, no mar, nas sementes de imensidão espalhadas por este mundo novo desenhando seu chão, somos, queiramos ou não, hermanos. Cada qual com seus trabalhos, com seus sonhos, cada qual, em meio à tanta exploração e sofrimento.
Se traçar estes caminhos, esperança à frente, saudade por trás, estenda suas mãos a outras mãos para sentir-lhes a calentura do reconhecimento e da amizade. Observe os latinos olhos vertendo lágrimas por dores comuns a todos, num choro deles e nosso. Reze com eles rezas de dona Canô, de nossos avós, de nossos orixás, de padre Júlio Lancelotti, de Paulo Evaristo Arns, de Francisco, o papa. Ensine-os a pensar com respeito em nossos babalorixás, em Mãe Menininha, em Dulce, irmã e santa dos pobres, no pastor Henrique Vieira, corajoso, assertivo, seguidor, com clareza, do espírito de Luz de Jesus Cristo.
Somos hermanos no devotamento às novenas, no fervor das rezas para todos os santos, para as Puríssimas que, por vezes, acreditamos serem muitas quando, na verdade, são uma, em Guadalupe, em Bogotá, em Manágua, no Equador ou no Brasil. Mudam de nome, mas não perdem a essência divina, a graça e o fruto bendito é o único Filho e ninguém mais. Aparecidas em imagens, muitas, sabemos, em milagres criados, outras na ingenuidade dos nativos que puderam vislumbrá-las no seu espírito, mas sempre e todas disponíveis para o amor e as bênçãos.
Seriam elas ou a palavra revolucionária de seu Filho a nos lançar ao horizonte aberto, sempre à frente de nossos passos, de nossos sonhos, de nossos ideais, até aqui inatingível? Interessante não conseguir transformar este projeto de natureza irrealizável em certeza, sem, no entanto, perder este vínculo que nos prende a ele.
Suportamos erros constantes, corrupção contínua, desvios morais porque nos alimentamos deste sonho de justiça e liberdade. Não há o que nos divida. Nem mesmo a língua. A que nos bendiz a nós, brasileiros, distinta da que bendiz a eles, hispânicos, impede que nos juntemos. As línguas amorenadas na sua origem, também se reconhecem irmãs numa mesma família e acreditam no poeta quando diz haver verdade maior que esta!
Assim não fosse, não usaria versos de Atahualpa Yupanqui, a que traduzo livremente, para ajudar-me a chegar à celebração pretendida.
Faço isso despretensiosamente, distante de quaisquer ideologias que possam tê-lo inspirado e respeitoso do poeta morto que fez do poema e da canção, sua verdade. Não há outro caminho senão a arte para juntar a todos num mesmo ideal. Não bastasse, em países hispânicos onde estive, o acolhimento foi de quem, apaixonado pela arte em suas diferentes manifestações, pôde receber de artistas convites os mais diversos para que juntos pudéssemos falar e saber da riqueza que se esparrama por todo o continente latino-americano.
Sempre tive especial paixão por terra que nos pertence, da Patagônia ao México e, pequeno ainda, sentia crescer em mim o desejo de penetrar estes distintos espaços para ver como eram e como se comportava sua gente. Tive sorte.
Ao entrar pelas brenhas da Amazônia envolvido por sua beleza e toda sua diversidade, alcancei o Suriname, suportando seu calor exagerado. Este é um dos poucos países que, na América Latina, nada tem a ver com o resto do continente. A proximidade, no entanto, com a Venezuela, naqueles anos distantes, me levou até lá tantas vezes, a ponto de ser convidado por um diplomata venezuelano a prefaciar-lhe um livro. Do Suriname ao Equador, segui andando, “curtido de soledad”.
Devem querer saber que celebração me impulsiona a escrever sobre tudo isso. Nos oitenta, em Piracicaba, trabalhando no Colégio Luiz de Queiroz de que tenho boas lembranças, alguns alunos penetraram-me o coração de tal modo que os tenho em mim, na memória, orgulhando-me muito de suas conquistas. Muitos, muitos. Alguns, desde muito jovens, elegantes, destes que sabem reconhecer o trabalho do professor e deferem dignidade que o professor merece.
Dentre tantos, numa das salas de aula, encontrei-me com Marília Montoya Boscolo. se a memória ajuda, a quem chamava Marília de Dirceu, por “sua face mimosa, misturadas púrpuras de rosa e brancas folhas de jasmim” Rosto perfeito e suave, formava com seu par, Werther, hoje, seu marido também médico, os dois sóis de que fala o poeta. Sobrancelhas arqueadas, cabelos negros, pele clara e delicadeza de trato. Marília, agora, doutora em Ciências Médicas, pude reencontrá-la em Campinas, com seu marido e filha, Lina, quase minha neta, voltando a sentir pulsar em mim os versos do poeta, para falar desta bela Marília.
Filha de mãe piracicabana, viveu um tempo aqui, antes de partir com a família, para Arequipa, de onde viera o pai para estudar na Esalq. Tenho vontade de transcrever a história que me conta, rica em detalhes, não fossem tão pessoais.
Ensina, com rara sabedoria, que as dores que a vida soma, os percalços, são nada, diante do que escreveu, ao longo da travessia, sobre tantos, bons e belos dias. O ruim perde a força, afirma. Menina madura. Amiga querida. Médica exemplar. Marília Montoya. Um nome. Muitas histórias.

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