Justiça, Verdade e Tempo, quero fazer-te elogios!

Por David Chagas | 05/12/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Sempre me disseram que as terras, para além do caminho que leva a outro município, nas cercanias da fazenda São João, eram nossas. Admirado, mirava. Vez por outra arrisquei pergunta, sem resposta, porque nelas, algo duro de imaginar e muito mais de aceitar, não deveria ser nunca assunto de criança, em especial criança astuta, capaz de entender tudo e até mesmo recontar.
Tratar disso, sempre de modo cuidadoso, só mesmo entre gente criada, usando a fala de modo entrecortado, para que, além deles, das suas paredes, ninguém mais entendesse. No meio dogrupo, uma tia velha, vez por outra puxando pelas mãos, poderia dar notícia. Arrisquei. Nada. Embravecida, mandou tratar com brinquedos.
Pois não é que algo me cutucou o espírito para saber. Que mistério haveria? Lugar bonito, estampado na natureza, quase sem nenhuma repetição em espaços circundantesguardaria maldição de passado distante?
Certa feita procurei saber dos primos se conheciam a história. Ninguém sabia. Sem que bem entendesse, em mim, a curiosidade exigia desvendar, como se tivesse participado de algum episódio neste passadoinsondável, mergulhado em mistérios a serem entendidos só mesmo no atravessar da fronteira distante para aqueles dias, ou mais próxima, agora.
O passar do tempo, só perceptível na velocidade dos dias, semanas, meses, anos, já que, em si, cuida de sua rotina sem que se dê conta deduração, me obrigou a penetrar parte destes abismos. Ali, morrera o avô, o meu avô, daí o distanciamento imposto entre seus descendentes e a terra que deixara por herança.
“Longe do agora bom é não pensar”, repetia a avó encolhida num canto, parecendo ainda assustada com a tragédia. Quando soube do poeta o fatiar do tempo, pude saber a razão de tudo isso. Em pedaços, o tempo permite, ano a ano, tudo o que acontece, tentando, na soma, entender se já é hora ou não, de esquecer. Nossa, quantos anos, meu Deus! ou, tão poucos ainda! ou nem tantos, ou mais, muitos mais, chegando a século.
Pois que é dezembro, no seu começo, e já-já, no seu fim. A lembrança de meu pai, morto num dia como o de hoje, obriga-me a remexer nas últimas conversas que tivemos, ele e eu. Ele, sempre tão digno, na sua altivez e elegância, no seu jeito calado de espreitar a vida, na forma como se revelava responsável, honesto, sem alarde, só na atitude exemplar desenhada em seu caráter e mantida ao longo da vida, deixou-me todos os detalhes desta história. Antes do adeus final, fez-me saber que aquelas terras eram heranças nossas, usurpadas, sem direito, e reconquistadas na justiça, sem que tão alta decisão fosse cumprida.
Em meio ao desconforto imposto pelo fim próximo, ouvi sua palavra, reverenciei sua lucidez e hoje, ciente de tudo lhes conto ao saber que se repete entre muitos. Quantoà esperança de tê-las conosco, o tempo dirá. Resta-me nisso, a alegria de voltar a ser, uma vez mais, vizinho de amiga querida que, nas proximidades, mantém o seu sítio, administrado por ela, num casarão lindo em estilo beirando ao californiano, encravado num pátio carregado de flores e de folhas.Recuperando estas lembranças todas, revisito o passado como filme.
Quando pequeno, olhando para meus pais, jovens, muito jovens, com quatro filhos enfileirados, na expectativa do quinto, os supunha velhos, nutrindo por eles, apesar do imenso carinho, distância e respeito absolutos. Hoje, anos seguidos de sua morte, prossigo aqui, hoje, com mais idade que a deles na partida, já que não têm mais esta preocupação do tempo, com igualrespeito, sonhando poder aninhar-me outra vez ao derredor deles.
Minha mãe, quem me apresentou um dia os sermões de Vieira, tinha sempre pronta, a cada resposta inteligente que dávamos sobre qualquer assunto, o hábito de fazer referência ao “estalo de Vieira”, era quem mais repetia, nos anos em que estivemos juntos, a certeza de que “tudo pode o tempo.Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera!”
Se falho na transcrição, perdoe-me o leitor. O tempo faz bom uso da memória na juventude. Depois, ao somar anos, falha, para revelar que, senhorde tantos destinos, não cometeria este equívoco. Ao ser fatiado, obrigou-se a isso ao revelar cansaço em razão dos anos responsáveis por perder-se estados de consciência passados, sem haver feito deles memento algum.
O tempo não curou, em mim, passada a morte de meu pai, a mágoa imensa de sabê-lo frustrado por não recuperar o que lhe deixara o pai. Digerir como, dizia ele, esta afronta da usurpação e do desmando?
Justiça? dirá o leitor. Agiu. Não com a agilidade devida, mas com respeitoso cuidado. Neste caso, já que, cega, erra muito. Deu vitória aos herdeiros. Souberam escrever os juízes da mais alta corte, ao assinar: Sentenciado. Transitado. Julgado. Adiantou? Nada.
Falta ao país caráter e consciência que ensine a reconhecer o dito, que obrigue ao direito estabelecido. Falta civilidade. Honradez. Honestidade. Respeitocomo aquele que se tinha pela mãe, pelo pai. Pelo vizinho. Pelos professores. Pelos magistrados. Pela Pátria. Pela bandeira que espelha a Pátria.
“Tempo, Tempo, Tempo,Tempo:/Peço-te o prazer legítimo/ e o movimento preciso/ tempo, tempo, tempo, tempo,/quando o tempo for propício.”Só não te esqueças,compositor de Destinos, de que a vida passa. E ao passar, vão-se com ela os anos somados, deixando de lado este acordo feito contigo.

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