Para que serve o Advento?

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Semana passada perguntava se o que sei, sinto e leio sobre negros, no Brasil e em alguns outros tantos países do mundo, é delírio ou verdade? Ou será infâmia ou covardia?
Contenho-me para não repetir o feito e agradeço as manifestações de apreço às verdades ali expostas. Devo ter incomodado muita gente. Perdão.
Por que pensei em repetir parte do que escrevi? Porque a lentidão, o caminhar sôfrego, este que me domina, igual toada de passos de meu pai que não envelheceu tanto, mas ganhou-me, ao menos em anos que agora conto, sempre elegante, magro, ereto, sem apoiar-se em bengalas, eu, já com elas, e sem a elegância de meu avô materno que fez, da sua, no final do século XIX e começo do XX, marca de imponência e júbilo. Ah, como tudo piora no Brasil de hoje, sobretudo calçadas que me derrubam e olhares que me maltratam.
O que lhes quero contar aconteceu muito próximo da residência de uma de minhas irmãs, em bairro nobre da cidade. (Bairro tem nobreza?). Casa, com chaminé de lareira, um Papai Noel agarrado às saídas da fumaça, exatamente como na minha infância, quando havia fogão de lenha nas casas, em tamanho natural, braços estirados pelo duto, luvas brancas nas mãos, suportando, por tempo largo, calor de quase quarenta graus, mãos cobertas por luvas brancas, marcadas pelo cinza da fuligem, exatamente como, na minha infância,fez-me por anos, como faz agora com a personagem que encontro, acreditar ser aquela a entrada do velho a quem, eu-menino, creditava o trabalho da entrega de presentes na noite de Luz.
No avançar das horas, sono e sonho da criançada, era quando meus pais tratavam de ajeitar presentes num canto da sala dominado pela árvore. Foi no ano em que ganhei bicicleta que descobri a traquinagem paterna. Um barulho estranho me despertou e vagarosamente saí do quarto na esperança de estar com o bom velhinho. De soslaio, vi meu pai ajeitando o veículo esperado enquanto minha mãe acomodava os pedidos de minhas irmãs, com esmero e cuidado. Voltei para a cama à espera do amanhecer para contar-lhes a descoberta.
Quantos anos me separam de tudo isso? Perdi a conta? Não. Tampouco quero saber quantos! Pois bem. Em determinadas ruas da cidade, em especial em bairros requintados, as casas se vestem com exagerados enfeites natalinos.
O desfecho deste sonho trouxe-me a certeza do que diziam na escola primária sobre o bom velhinho. Não passava de ilusão e fantasia. Chateou-me, à época, a verdade, mas não roubou, da data, seu real significado. Em casa, comidas e presentes não diminuíam o bem maior da noite. Todos confiávamos no Menino e revivíamos sua vinda certos da redenção da humanidade. Sem presentes, este o grande legado: redimir o mundo. Por isso o adorávamos. Por isso, o adoramos.
O pequeno ali, parado a olhar o descabido espetáculo, espelha o Menino, Aquele, e o sentido da divina cena cada vez mais sem brilho, não pela cena, mas por quem deveria pensar nela.
A humanidade, completamente esquecida da ternura e do acolhimento, tão piorada,parece desprestigiar a graça do Amor de Deus. Há dois mil anos, alguns tantos negaram ao Menino o apreço que teria. Hoje, este e outros tantos milhares esperam pelo afago ainda mais ausente.
Volto às ruas. Eu, no meu lentíssimo caminhar pela cidade. Próximo de mim, olhar arregalado, magrinho, um menino, por certo, faminto, para diante de casa que compõe a cena e assiste a casal ajeitando adornos natalinos por todo o ambiente. Suspira fundo e pergunta porque um boneco do velho Noel se pendura na chaminé. Não cairá?
O casal, sem nenhum acolhimento, olhar enviesado, diz não haver perigo algum. Espantado, o menino silencia e espera que o velho não suporte muito tempo na posição em que está. Passados alguns minutos, desiste por achá-lo resistente demais. A expressão dos protagonistas também lhe dá dicas de que incomoda e deve, portanto, sair de cena. Não, não saia do Natal, mas dos enfeites.
Prossegue na caminhada. Não sabe, caminhando, fazer caminhos, como ensina o poeta. Esboça caminho que sem generosidade alguma ensina o que é viver e aonde chegar. Como? O olhar indaga. Faltam mãos estendidas, esperança e luz, estrela-guia.
Ele anda. Nada mais que isso. Sempre à procura de nada ou de algum resto de pão. Para que serve o advento? Para ler melhor a vida.
Dói-me. Não desejava este espetáculo. Cansado, preciso acomodar-me num banco, na praça próxima. O pequeno, desfigurado pela miséria imposta, se aproxima. Está em busca de algo que lhe dê conforto físico. A alma, descolorida, desfigurada, com sede de sentimentos, de vida afetiva, parece pouco ou nada saber de sua função vital.
Conversamos. Pergunto onde vive. Diz-me. Não volta para os seus há dias. Perambula. Precisava comer. Tem fome, muita fome.Para distrair o estômago que dói, observa a cidade mudando de cor e de sentido na arrumação das casas, dos prédios, de tudo o que estimula ilusão e faz esquecer o Natal do Menino.
Insisto para ajudá-lo a entender que se parece ao Menino do Natal, Senhor da Esperança, da Verdade e da Vida. Sequer sorri. Adulto, entenderá, tão logo sinta fundo o egoísmo dos homens, a perseguição, a miséria em toda sua extensão.
Dirão que sou comunista? Por certo. Sou cristão! Enquanto conversamos, neste tempo de tecnologia avançada, pelo celular, trato de providenciar-lhe comida. Pouco valerá. Uma ação de momento, nada mais que isso. Nenhum compromisso que se perpetue. O fato, no entanto, estará em mim, para sempre.

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