Delírio ou verdade? Infâmia ou covardia?

Por David Chagas | 20/11/2021 | Tempo de leitura: 4 min

E de amor andamos todos precisados. E como! Amor com singeleza, atitudes elegantes, palavras brotadas do coração do homem, olhar sereno, sorriso franco, gestos em desenho afetuoso e calmo.
O tempo, aprisionado entre passado e futuro, assistindoao presente a escapar pelos dedos, obriga a pensar nisto. Ao pôr do sol, como me vejo, agora, os sentimentos se embaralham.
Neste ano, não pude senti-lo em toda sua extensão. Queria vê-lo anunciar-se em manhãs azuis que perdurassem todo o tempo, festivas, com bons acontecimentos. Se houvesse chuva, que viesse benfazeja, generosa, saciando a sede da terra marcada pela seca. Fica, no entanto, deste ano da graça, o que me fez o tempo, desfazendo destinos. Ao dar-me conta das boas novas que o tempo oferecia pude saber que o ano já experimentava sua última fatia. Novembro.
Foi ontem, Consciência Negra. Consciência tem cor? Antonio Houaiss, ensina em seu dicionário que consciência é “sentimento, conhecimento que permite ao ser humano vivenciar, experimentar ou compreender aspectos ou totalidade de seu mundo interior”. E conclui com igual sabedoria: “sentido ou percepção que possui do que é moralmente certo ou errado em atos e motivos individuais”.
Para quem carrega, com orgulho, a herança poligênica de seus ancestrais e aplaude o registro deixado por eles na cultura, na música, na afetividade, no respeito ao outro, pergunto se tem valido celebrar o dia da Consciência Negra, em respeito a Zumbi, a Dandara, se nem uns nem outros, na sua maioria, reconhecem nem são capazes de vivenciar, como nós, o mundo interioronde a revolta pulsa e a injustiça dói.
Não quero, com isso, minimizar a importância da data. Pelo contrário. Chamo a atenção para quevalha a pena: defender, com coragem, em defesa da cor, já que humanos somos todos, os direitos inalienáveis que tanto a Justiça quanto o Governo, ignoram. Preferiria que um dia como o de ontem permitisse entender o que houve em séculos passados e se reconhecesse, com clareza, o apartheid à brasileira que se enraizou e persiste. Que se sentisse a maldade imposta a um povo que tinha sua própria cultura e foi obrigado a negá-la. Humanos vergonhosamente escravizados, por brasileiros encostados no altar de Deus esquecidos de quem lhes produzia a fortuna amealhada já que eram a principal categoria de trabalhadores na construção da pátria.
Obrigados a abdicarem de sua história, de seu nome, de sua religião, tratados de modo cruel e desumano pelos senhores da terra, abençoados pelo regime monárquico e pela Igreja. Isabel, em parte, redimiu este mal. Não soube, no entanto, valendo-se da pena, cumprir com o dever do Estado e lhes oferecer o que lhes era de direito.
A mesma pena segue escrevendo histórias diferentes. A supostamente verdadeira, enganosa e irreal, e a que estaria em conformidade com os fatos, real, registrada em sangue e dor, incapaz de impor-se sobre o contado, falso e lisonjeiro.
Castro Alves, a seu tempo, com a força da juventude e o brilho da inteligência, denunciou: “Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta/ que impudente na gávea tripudia?”E envergonhado, reconheceu:“Existe um povo que a bandeira empresta/ p’ra cobrir tanta infâmia e covardia!”
Tenho a honra de ser neto, pelo lado materno, de um notável abolicionista, profético nas suas atitudes, como se imaginasse, no final do século XIX, que sua filha daria, por seus filhos, ao Brasil, a cor que lhe é característica e se casaria com um afrodescendente. Meu avô, jornalista na cidade onde tenho vivido a maior parte de minha vida, fez estalar sua voz nas grandes fazendas próximas a Rio Claro e conclamou alguns dos líderes regionais a que libertassem seus escravos.
Não trago, pelo que conto acima, a cor da pele de meu avô, mas tenho em mim e comigo, a coragem em denunciar o erro, a vergonha, a desdita, o engodo exatamente como fez. Penso e faço disso instrumento do bem e da verdade.
Certa feita, muito aplaudido ao final de palestra, alguém perguntou a origem de meu nome. Não haveria outra resposta senão a verdade. Ao ouvir em sussurro a mesma voz: Nossa, não imaginava, respondi presto na palavra e no gesto: tivesse cabelos louros e olhos verdes, não haveria espanto. Ao perguntador, naquele momento, não importava o feito, mas a cor.
Como de amor andamos todos precisados!!!
Nada mais indigesto à classe dominante que ter alguém,sem origem europeia ou americana, que possa ilustrar-se, pensar, fazer da palavra, ação e provar que o Brasil é porque houve quem o fizesse com abnegação e trabalho e lhe desse contorno.
Democracia racial? Relato simbólico. Mito!Cuidado! Há pouca ou nenhuma verdade por trás de fábulas. Se pode, uma crônica domingueira, dar luz à história oficial, por que não? Seria bom tomar consciência da verdade histórica. O poder instituído gosta desta visão eurocentrista, deixando de lado o que diz respeito à ancestralidade, negando o passado e fazendo vista grossa à rica herança cultural.
A uma data como a de ontem, interessa unir e reconhecer a história de luta travada pelos antepassados, independente de sermos afrodescendentes ou não.

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