Um prêmio. Uma mulher. Uma história.

Por David Chagas | 31/10/2021 | Tempo de leitura: 4 min

De quem seria? Quando a Rádio e Televisão Portuguesa anunciou que o Prêmio Camões deste ano era de Moçambique,me pus a pensar. Não se passaram dois minutos. Pareceu-me uma eternidade. Aquele palavreado interminável contando tua história, teus dias de miséria e dor como da grande maioria dos moçambicanos, teu engajamento nas lutas de independência e, posteriormente, tua decepção com a Frente de Libertação. Não identifiquei. Por fim, teu nomee a leitura de poema teu.
Não sabia, Paulina, que vivias agora na Zambézia a viver e a escrever. Supunha reencontrar-te em Maputo, caso voltasse um dia. Tenho, como deves supor, predileção pelos nomes de províncias e distritos moçambicanos e me dava enorme prazer enunciá-los. Zambézia, entre Sofala e Nampula, buscando o norte, era um dos que mais repetia.Bom saber que estás aí, nestas terras do norte.
Sabes que, na cidade onde vivo, em São Paulo, uso algumas horas do dia para escrever o que desejo e quero e outras tantas para cumprir dever. Com Rubem Braga aprendi que o cansaço vem destes textos a que te obrigam, sobretudo quando demasiado longos. Nestes tempos em que falta tempo para tudo, de modo especial à leitura, entregar-se à faina sem esperança de generosa leitura, espeta a alma.
Bom seria que todos se espelhassem no que faz o outro para entender que “a vida é como a água, nunca esquece o caminho. A água vai para o céu, mas volta a cair na terra. … A vida é um eterno ir e voltar. O corpo é apenas uma carcaça onde a alma constrói a sua morada…” Trabalhoso, no entanto. É o que procuro seguir depois que me ensinaste. Se me dói o corpo por maltratá-lo, cumpro a lição da água.
“Aqui”, falou o apresentador, “houve grandeza destruída pela bárbara invasão.
Aqui reside o útero da vida e o umbigo do mundo.
Aqui é o berço da História.
Do Cabo ao Cairo o vento geme como quem ri e chora.”
Para Moçambique, onde se sente ainda, de forma aguda, o gemido do vento como quem ri e chora, vai o prêmio que reconhece a dor de tuas lágrimas, tua voz, teu clamor repetido por outros tantos ao longo dos anos em igual sofrimento.
Tu, Paulina, falas da terra e dos que, distantes dela, por descendência ou por aparência, se aproximam. Tua voz ecoa nos diferentes lugares aondechegaram tantos em meio asonhos dantescos, sofrimento e dor. Em cada verso teu ainda se pode ouvir “tinir de ferros… estalar de açoite…” Ainda é possível assistir a “legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar…” Veem-se “negras mulheres, suspendendo às tetas/ magras crianças, cujas bocas pretas/ rega o sangue das mães. Outras moças, mas nuas e espantadas/ no turbilhão de espectros arrastadas/ em ânsia e mágoa vãs!”
Os elos que nos prendem a todos formam uma só cadeia. A mesma multidão faminta cambaleia pelos espaços que sobram em meio à miséria e degradação a que foram entregues. Há quem delire, há quem enlouqueça. Há quem se embruteça diante de tudo e por tudo. Há quem ria. Há quem gema. Como há, também, quem não veja nem ouça nem sinta nem se incomode com tudo isso como se houvesse uma névoa encobrindo a vergonha que a bem poucos se revela.
Numa poesia sonora, com estrofes e versos construídos com coragem e vigor, Paulina Chiziane canta a dor de ancestrais arrancados da África e dos que lá permaneceram submetidos à exploração e ao sofrimento.
“A vida os levou por mil caminhos./ Pelos carreiros cheios de espinhos/ Levam consigo a vontade de viver e de vencer/ Arrastam o estigma colocado sobre uma raça.”
O prêmio Camões, Paulina, é a nova oportunidade para seres ouvida a grandes distâncias, no tempo e no espaço. Fico feliz com isso. A tua voz há deecoar, repercutir e denunciar quem são e onde estão as “as vítimas preferidas da polícia/ a maioria da população das prisões./ os que habitam as favelas mais sombrias/ Nas periferias de todas as Américas.”
Quanta atualidade em teus poemas de resistência ao revelarem a presença da escravidão, em novas e violentas formas de dominação, espelhando, com isso, a incoerência dos tempos modernos ao tratarem tudo como se já não houvesse resquícios do passado.
Não falei de tua obra em prosa, de tua Balada de Amor ao Vento, dos Ventos do Apocalipselivros que não poderiam jamais deixar de ser lidos. Também de Niketche – uma história de poligamia, em que, já na dedicatória, com clareza e coragem, repetes o provérbio zambeziano: “Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz”.
Mesmo que volte a Maputo – que bom seria! – te encontrarei outra vez, Paulina? Te beijarei as mãos e a testa? minha forma de reverenciar as escritoras de tua terra? Te direi de minha alegria incontida ao ouvir teu nome premiado e pensar em ti pelos corredores da Eduardo Mondlane onde estudavas e eu me aventurava a ensinar Literatura Comparada?
Prossegue, Paulina, com tua obra universalizada pela qualidade dela, agora, reconhecida num grande e merecido prêmio. Insistas na necessária denúncia de um mundo de complicações impostas às mulheres em razão do gênero e mantém este ar de contação de histórias fazendo conhecer ainda mais a tradição oral das culturas orais ocupando, na palavra escrita, seu devido lugar. E conta sempre com minha leitura.

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