Bazaruto, primeiro. Saramago, depois

Por David Chagas | 24/10/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Foram dois momentos extraordinários numa mesma fração do tempo. O primeiro, uma viagem ao Arquipélago de Bazaruto, no Oceano índico, na costa norte de Moçambique. Se me acompanha, depois destes dois ou três domingos ocupado com assuntos vários, retomo o que me dita a memória e volto às minhas andanças pelo mundo.
A você, leitor, já o levei comigo à África do Sul. Lá estivemos, ainda que rapidamente em Cape Town- lembra-se? -cidade que do outro lado, ao sul do continente africano, olha e se imagina univitelina com o Rio de Janeiro, acreditando mostrar-se ao mundo com igual beleza, dando suas costas já que não pode exibir-se como o Rio, olhando o Atlântico. É divertido saber seu povo assim iludido. Cape Town é, sem dúvida, uma bela cidade, mas distante, distantíssima da maravilhosa cidade do Rio de Janeiro. Por sorte o adjetivo que veste o Rio revela, no mais amplo sentido, todo seu charme.
Depois fomos, o leitor, no texto, eu, na memória, juntos, ao Cabo da Boa Esperança, um dia, das Tormentas, onde Atlântico e Pacífico, em águas tumultuadas, lutam corpo a corpo, num flagelo sem fim. Bem dado o primeiro nome, quando, o mar revolto, impediu as naus portuguesas de avançarem com seus sonhos.
Entendam como quiserem. Quando por lá estive, passados anos de ter lido Mar Português de Pessoa, fiz deste encontro de águas, valente, furioso, o Bojador, para fazer sangrar a memória da portuguesada colonizadora, a fim de saberem quanto também choraram os moçambicanos por conta do sofrimento imposto pelo colonizador.
Quase ao despedir-me do continente africano, voltando do paradisíaco Arquipélago de Bazaruto, distrito de Vilankuto, província de Inhambane, em Moçambique, para meu prazer pessoal, pouco conhecido, permitindo com isso, desfrutar ao máximo daquele território com fauna e flora inigualáveis, surpreendendo-me ainda mais que as Seychelles tão propaladas, extasiado com o que vira, recebi a grata notícia de que José Saramago, um dos maiores escritores da língua portuguesa, Prêmio Nobel de Literatura, no ano de 1998, visitaria Maputo e queria encontrar-se com o diretor do Instituto de Cooperação Bilateral Brasil-Moçambique e estar comigo no curto período em que estivesse no país.
A notícia encheu-me de entusiasmo e orgulho e, já em casa, tratei de comunicar o embaixador para que soubesse e, querendo, estivesse conosco. Surpresa minha, eu que sempre acreditei na nobreza da carreira (nobreza aqui indicafinura, comedimento, certa aristocracia) pude melhor entender o quanto uma diplomata, em Quito,acertara aodissuadir-me da transferência para a África, não pelo continente, nem mesmo pelo país, mas pelos que, por lá, comandavam as relações entre os dois países. Não era do continente, nem do povo que me falava. Era do chefe do posto, de sua auxiliar.Com artifícios de linguagem, tentou mostrar-me o que só mesmo a experiência me permitiria entender.
Ao comunicar o desejo de Saramago, não sei se por inveja ou outra psicopatia qualquer, de pronto, disse-me: “no instituto, não! Não coloco azeitona em empada portuguesa.”Muitos não imaginam dissabores desta natureza, sobretudo compresença que só nos honraria. Não supõem, também, que camisas de seda, ternos de linho e punhos de renda podem não estar ruídos, mas nem sempre estão engomados.
Por isso, gosto de citações deRoberto Campos, sempre que, com coragem, não negam verdades. Ele, ministro de primeira classe, tem autoridade para comentar comportamentos no Itamaraty, que confirmam o que afirmo.
Outro diplomata, em 1992, a serviço do governo de São Paulo, ao receber-me no palácio dos Bandeirantes,assessor que era do governador de São Paulo, ao perguntar com quem servira o Brasil em Moçambique, diante da resposta, não hesitou em afirmar que reconhecia, com clareza, a má sorte de ter estado, em trabalho dignificante,sob a pesada orientação do espírito do mal. Pude entender a razão disto ao saber o porquê de tão lúcida conclusão.
Saramago, a razão de meus comentários anteriores, neste encontro em que o Brasil perdeu a oportunidade de acolher um dos mais geniais escritores de língua portuguesa, soube oferecer, com sua característica simplicidade, rapidez de raciocínio, brilho raro de privilegiada inteligência, deixando, ao final o recado a quemtinha um coração de ferro. Faça bom proveito! “ O meu,” disse ele, fizeram-no de carne, e sangra todo dia!”
À época, embora estivesse diante de um tirano, celebrou a jovem democracia brasileira, fez bons comentários a respeito da cultura nacional, celebrou avanços nos ideais da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, comentou, com segurança, a ação do Brasil em Moçambique nas áreas de Educação e Cultura, autografou sua obra que levei comigo e garantiu não esquecer-se jamais de leitor como eu.
No início deste século, provou ter boa memória. Pude estar com ele, a seu convite, agora, em terras brasileiras, num encontrode professores, em São Paulo. Num Ginásio do Ibirapuera, lotado,coordenado pela Editora Moderna, abriu com palestra de não mais que trinta minutos, Congresso amplamentedivulgado por todo o país em razão de sua presença. Dizer mais, para quê? Sua presença ali já dominara todo o encontro.

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