Entre anteontem e amanhã

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

“Penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de ‘eternidade’.”
O fato de ter sido anteontem o dia do Professor trouxe-me, ontem, e traz-me, ainda hoje, a certeza de que introduzi à história, porção de eternidade. Soube avaliar o bem de ter encontrado um e outro dos mestres nos meus caminhos e, mesmo que não haja boas lembranças do primário, do ginásio, do colégio, posso garantir que os pude encontrar em todos os graus sem esquecer jamais de Cida Bilac, dos tempos de colégio. Tenho-os na memória. Um a um.
Primeiro minha mãe que não foi minha professora, mas me ensinou tanto. Quanto? Nem sei dizer. Minhas irmãs tiveram a sorte de tê-la em dose dupla. Primeiro, mãe! Depois, mestra, guia, natural como um dia mostrando tudo, como ensina o poeta!. Depois, meu pai, honrado, digno, “fazendo seu dia involuntariamente”. O poeta ditou e eu aprendi: só fora como eles se tivesse sido eles.
A primeira professora ainda vive. Hoje, preocupada desenrolando velhas lembranças como se fora agora o instante já vivido. Se tantas lembranças se juntam à memória numa avalanche, se enerva, embravece. Brava, como na minha infância.
Recebeu-me com tristeza alongada nos olhos e me fez perceber que se agita diante de quem, com ela, tenta impor o que a vida exige agora. Seu presente é aquele, que entende acontecer ao sol do instante. Perdeu-se no passado, que recupera à perfeição e crê nele.
Avança em anos. Pouco sabe. Da vida de antes, a que trazia na memória os anos fatiados, cansou-se. Tranquiliza-se quando recolhe, num canto da mente, o que foi e trata com a clareza de então. A mãe, morta aos cento e tantos anos, revive na cuidadora. Ou numa parenta qualquer. Comigo, entendeu receber meu pai a quem falou do filho com desenvoltura tal que me obrigou a revisitar, com ela, os anos idos.
“Obriguei-o a sentar-se em carteira dupla, na terceira fila, porque muito grande para seus seis anos e pouco.” Repetia o escritor dizendo ser mesmo, no físico e na alma, o menino, pai do homem. “Fácil alfabetizá-lo”, disse. “Já veio com meio caminho andado. A mãe, por certo. Contou-me ler jornal, do avô”. Calado – um pouco confuso e triste, ouvi. Onde a professora a quem festejo todo ano?
Pequenina, jovem ainda, se arredondou da cintura para baixo a ponto de despertar em mim, sempre que olhava o globo terrestre, a sua imagem. Achatada nos polos e dilatada no equador. Certa feita, num dia do professor como agora contei esta história e ela se divertiu provando ter aguçado senso de humor. Foi quem me ensinou-me juntar letras, escrever palavras, formar frases.
Segundo, terceiro, quarto anos primários e elas, as professoras, ensinando e cobrando tarefas feitas, livros lidos, desenhos. Hoje sei que nada deveria ter sido como foi.
Triste supor que pouco mudou. Nada, no entanto, afastava o enorme respeito que lhes devotávamos. Podia, até mesmo, não haver afeto, mas havia deferência, consideração, reverência. E gratidão, muita gratidão.
Quarenta e dois anos passei ensinando. Isto me autoriza revelar que, embora não tenha atendido à orientação natural, espontânea que, pequeno ainda, me chamava, fui feliz. Não me arrependo de ter-me feito professor. Ressinto-me, isto sim, do que me fez a vida, num determinado momento de minha história, um viés moveu-me por circunstâncias diversas, a traçar, no momento exato da decisão, encruzilhada, jogando-me por caminho mais curto, mas não aquele que planejara seguir.
Determinado, entreguei-me ao que me obrigava para fazer da profissão determinada, o melhor que pudesse. Pude entender pedagogicamente quem era oo sujeito da ação, a quem deveria ajudar a fazer correta leitura da vida e do mundo.
“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Aqui, a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui, a estória acaba.”
Não acaba sem deixar entrever algo. Se bem puser olhos e mente descobrirá o que teria sido, não fosse o caminho percorrido. De um jeito ou de outro, em outubro estaria a data da celebração.
Nesta porção da eternidade, o médico que não fui e, professor, quando um e outro aluno anunciavam seu desejo, espelhava-me neles. Hoje, quando necessito, busco por eles, nas diferentes especialidades que a saúde exige. Há entre tantos, excelentes. Não bastasse a qualidade profissional, posso chamá-los pelo nome, como importa, sem dar-lhes título porque neles, a nobreza está no fazer, na dedicação ao paciente.
Nestes últimos tempos, fala-se por demais nos médicos. Pela coragem demonstrada. Pela ação imediata tão logo a pandemia resolveu instalar-se no mundo exigindo destemor. Pelo cumprimento do juramento feito. Não hesitaram em socorrer. Muitos, inclusive, morreram por conta do mal invisível que se agiganta quando instalado no organismo. Eles, na linha de frente.
Heróis. Oro por eles e desejo que orem, também. É preciso. Diante do trabalho, a reza faz milagre. Há dois anos entregaram-se à garra. Têm lutado bravamente. Guerra insana. Sem trégua, “fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar”. Nem sempre passa. Eles, no entanto, permanecem.

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