Restaurantes, mística e estigma

Por Cecílio Elias Netto | 05/10/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Declaro-me absolutamente insuspeito para afirmar, reafirmar, proclamar a excelência da arte culinária. Digo-o, também, com um sentimento de santa inveja. Pois, dessa arte magnífica, o mais próximo que consegui chegar é preparar minhas pipocas no micro-ondas. Com a cozinha, a minha é uma história lastimável.Consideram-me perigoso tão logo chegue à cozinha.
Isso posto, retomo o elogio à arte culinária. A história da alimentação é a própria história da humanidade. E, por isso mesmo, fascinante, temperada de simbolismos e de religiosidade. Não há como fugir à generosidade da Mãe Terra. Que, no Gênesis, já nos fora dada como fonte de nosso alimento: “toda erva de semente que existe sobre a face da terra, e toda árvore que produz fruto com semente: (…) e todos os animais da terra, e todas as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam, todo os vegetais eu lhes dou para alimento”.
Eis, pois, que o Criador privilegiou o ser humano com todas as coisas que existem. Pelo menos é o que está escrito. E a dádiva – penso eu – foi por ser, o homem, o mais belo sonho de Deus, criação à sua “imagem e semelhança”. Pena que, muitas vezes, o sonho mais se revele como pesadelo. Sei lá. O fato é que a alimentação conta toda a história do ser humano. E isso é fascinante. Pois vemos o homem sobrevivendo desde os simples vegetais até a descoberta do fogo e, em seguida, com infindáveis invenções gastronômicas. E a mudança de hábitos. E a criação de objetos e a maneira de preparar os alimentos. Enfim, uma história sendo, ainda, narrada.
E o vírus, nessa história alimentar, quais transformações trará? Ou já não as trouxe, com famílias voltando a preparar seus alimentos em casa, um retorno ao fogão? Acredito estarmoscomeçando a recuperar sagrados valores da vida: a comensalidade, a ritualização socializante da alimentação. Pois a civilização começa a revelar-se quando as pessoas se sentam à mesa. Está em Plutarco: “Nós não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer juntos.” Mas, cada um com seu prato nas mãos,diante do televisor, isso é comer juntos?
O fechamento forçado de bares e restaurantes tem sido perda que ultrapassa o econômico. Eles são herdeiros de encontros centenários ocorridos em históricas pousadas do passado, o estar juntos em albergues, tavernas e tabernas. E, também, em botecos e botequins. O mistério da transformação do pão e do vinho em corpo e sangue aconteceunum pequeno lugar de comensalidade. Numa ceia, a ceia eucarística. E, ainda agora,o solene, o amoroso, o congraçamento acontecem em almoços e jantares, em cafés da manhã, em chás da tarde.
Outros tempos, novos tempos? Não creio sejam assim tão novos. Para muitos – em especial, no radicalismo religioso – criou-se, para restaurantes e bares, o estigma de serem lugares de vícios e de embriaguezes. Mas são seculares. Não teria sido, talvez, por excesso de vinho que Judas cometeu aquela besteira? Não há como negar haja uma fascinante mística em torno dos restaurantes. Quenasce desde a criação do primeiro deles, em Paris, como um lugar de energização. “Restaurant” era um caldo de carne para energizar as pessoas. E “restaurateur” e “restauratrice”, os responsáveis pela generosidade. A partir de então,o restaurantetornou-se centro e palco de acontecimentos que mudaram a história da humanidade.
Esse vírus idiota atrapalha-me, também por impedir encontrar-me com amigos queridos para filosofices desimportantes. Ao sabor da cervejinha, da caipirinha, do lambarizinho frito. Preciso restaurar-me. Urgentemente!

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