Por Culpa de Mafalda

Por David Chagas | 04/10/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Recebo, pelas redes sociais, visita de Mafalda recomendando deixar de lado a preocupação com peso, que tanto incomoda e maltrata a saúde. Gordura, sugere com sua perspicácia, a chiquita argentina, de modo sorrateiro, apressura a chegada da indesejada das gentes. E conclui:“Está decidido. Nesta vida desejo e quero ser feliz. Na próxima, faço dieta”. Olho a genial cria de Quino, a quem, desde menino, devoto amizade e apreço, e entendo ser bom atender ao que dita, aliviando-me a ditadura do peso.
Perfeito. Mafalda,com sua natural autoridade,recomenda segui-la. Sutil, vivaz, impossível não atender. Além disso, amigo leal, não hesita. Atende.Depois de pensar tudo isso, divirto-me com esta menina danada e enveredo por outros caminhos de outras tantas leituras.
Terá sido errado aprender, menino ainda, esta relação entre texto e vida? Não creio. O devotamento era tal que, em tempos de “Tico-Tico”, as histórias do vovô me fascinavam. Minhas irmãs e eu o tratávamos assim. Vovô, devotamento de netos. Respeitávamos suas histórias. Essencial, atender a tudo o que ensinava. Cada história guardava verdade moral a ser seguida. Hoje sei. Transcendia o texto e nos alcançava por inteiro com seu jeito manso de dar ordem na suavidade do texto.
Quando, passados anos, já na universidade, com teóricos e teorias de linguagem a dar novos contornosde entendimento, cheguei a pensar que, não ter conhecido meus avôs, seria a razão de ter dado a personagens fictícios tamanha consideração e respeito.
Tomara o leitor de meus textos curta comigo lembranças como esta! Se este texto “convidá-lo à reflexão acerca da dinâmica que constitui o ato de ler e de seus possíveis efeitos a partir dos pontos de vista da teoria literária e da psicanálise, objetivando detectar pontos de aproximação entre diferentes concepções”, estarei livre de críticas mais severas.
Ao fazer, aqui, hiato entre aquelas memórias de vida sobre cantos do mundo em que estive e pessoas que conheci,espero mexer neste entrelaçamento de fios de significantes, com o sujeito tecendo sua existência na linguagem, entre letras, sílabas, frases, signos e significantes desde a torção, ainda na infância, quando, como eu, entrelaçou o real e o imaginário.
Nunca procurei saber como se estabeleceu o relacionamento com os personagens imaginários que conviveram comigo. Ainda muito pequeno, quatro ou cinco anos, sentado, com minhas irmãs, na mesa de jantar, viajamos meses pela Europa, no navio desenhado graças à leitura adequada de minha mãe das páginas de Europa Tranquila.
Dias seguintes, conversávamos entre nós e com amigos como se fora real a viagem. Anos depois, ao lado de minha irmã e meu pai, eles, pela primeira vez por lá, viajávamos e víamos saltar desta realidade recordações em busca da “Europa exumada pelo autor, a Europa do nosso sonho e da nossa admiração, a Europa verdadeira, berço da civilização ocidental, baliza do pensamento e da arte no mundo”.
Já lhes contei isso. Tínhamos, graças ao mapa-múndi e a pedagógica intervenção materna, noção clara dos lugares por onde navegava Mário Graciotti, o autor, relatando aos netos, os países em que aportava. Foi, também ele, outro de nossos “parentes”a participar denossa infância, ensinando-nos e deixando-nos detalhes das cidades em que esteve, dos museus que visitou,objeto de sua reportagem.Escreveu para os netos. Juntamo-nos a eles de tal modo que somamos, enriquecendo ainda mais as relações sociais familiares num tempo livre dos sucessivos avanços da eletrônica responsáveis por manchar o prazer do convívio.
Presentes na minha infância, só as avós, uma delas, não nos falta, apesar do estado de ausência, amor para toda vida. Vez por outra, conosco, nos longes da infância, um tio que apadrinhou a criançada, espécie de avô querido. Quando nos punha sobre a perna para balançar conosco, tínhamos nele o avô do Tico-Tico, Dona Benta e Tia Nastácia.
Por certo muitos dos meus leitores, sempre tão generosos, comigo, jamais ouviram falar em Tico-Tico, em seus personagens, Reco, Reco, Bolão e Azeitona. Terão ouvido falar em Dona Rachel de Queirós e a última página de O Cruzeiro? Tomara! Leitura esta a que nos convidaram nossos pais ao fim da primeira infância. Depois, Clarice Lispector escrevendo, para atender a seu filho, história que fora só dele num primeiro instante, para, mais tarde, revelar a autora como excelente escritora infantil.
Conheceram Condessa de Ségur outra das autoras infantis de meu tempo? Monteiro Lobato no Sítio do Pica-pau Amarelo? Leram suas histórias, conheceram a ilustração e penetraram fundo a imaginação, como fazia a meninada ledora, acreditando plenamente no encantamento das criações deste nosso escritor genial?
Quando menino, ao ler as histórias de Lobato, chamava minha mãe a cada instante. Gostava demais e tinha este hábito de dividir com ela o encantamento acreditando não conhecer. Como a pouca idade não me permitia entender bem os dois mundos que se interpunham, o real e o mitológico, pedia socorro, o que, de certa forma, alimentava ainda mais o convívio amoroso e permitia aprender algo que, sem imaginar, dava-me luz às informações do futuro.

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