Quando me ajeitava para deixar o Equador com destino à África, a esposa do embaixador, em Quito, me chamou, tentando dissuadir-me. A forma escolhida, no entanto, me impedia entender com clareza o que dizia. Como tinha especial interesse em conhecer o continente africano, optei por desconsiderar o dito e, coração apertado, acenei ao território andino. Sorte a minha ter nascido em casa onde estes achados sabem ter valor. Conhecer lugares, estabelecer diferenças do já conhecido, andar pelas ruas de suas cidades, entender a arquitetura de suas igrejas, observar esculturas que nelas habitam, tudo isso me ajuda a contemplar a razão divina do ser nascido.
Ao acenar para Quito e a outras tantas cidades da cordilheira onde a riqueza da cultura hispânica, em especial nas artes plásticas, sobeja, antecipei a saudade por sentir, revisitando a ciranda de vulcões dando vida e encantamento à paisagem, a grandiosa beleza da cidade colonial, guardiã da história, as obras de arte a que tive acesso graças à aproximação com Guayasamín, Viteri e outros artistas plásticos notáveis, seus indígenas insurretos e destemidos. Precisava, com este último adeus, confirmar aceite ao desafio imposto para estar em outra parte do mundo.
Chegando a Moçambique, recebeu-me diplomata deveras espetaculosa, fazendo-me acreditar ter aterrado em local interessante, desenhado cuidadosamente em seus contornos, graças às variações de azul do Índico..
Alegre, agrandada de corpo, espécie de figura de Botero, afigurou-se senhora de hábitos comuns, falante e simpática. Gestos alongados, repetidos com insistência dentro e fora do carro que ela mesma dirigia, espalhafatosa, diferente, em tudo, dos diplomatas conhecidos até então. Apresentou-se conselheira, função que exercia no posto, sem deixar-me entrever o que me revelaria o tempo, quando estivesse montada em poder. Em sua companhia, fez-se longo o caminho para o hotel. Para aliviar o peso da viagem, permiti-me ter uma primeira impressão da paisagem maputense.
Encantaram-me, nas paragens feitas, a aproximação do povo sofrido da cidade, clamando por ajuda, sem exagero igual ao que se vê no Brasil de hoje, mas semelhante em tudo quase tudo.
Bom sentir o português próximo do falado em Portugal. Aqueles pretinhos de voz suave, deixando entrever a mestiçagem da língua, num português amorenado, rico em vocábulos bantu garimpados em tribos ou sob influência de outras tantas línguas de países vizinhos.
Nesta mesma tarde, fui à Matola, distrito da capital, visitar Chissano, prestigiado escultor de renome internacional. Melhor apresentação da cultura local, impossível, eu que já conhecia sua obra do Metropolitan de Nova Iorque e de galerias italianas.
Fez-me bem poder oferecer a brasileiros esculturas dele para que pudessem saber de um artista que trabalhando em madeira, respeitava o desenho original apresentado. Das matas que frequentava, recolhia os troncos, os galhos, as lascas, os gravetos de árvore e, a partir disso, criava sua obra, sem violentar, sem ferir, sem machucar com nova grafia de genial criatividade, o texto original.
Hoje, ao pensar naquela tarde de sábado, em casa do artista andando pelo ateliê, pela galeria e pelos espaços ajardinados, não resisto na saudade e na emoção, parecendo-me estar a ouvir Chissano dizer poema de Mia Couto, recolhido numa das primeiras leituras que fiz deste escritor fabuloso.
Num atropelo de frases,o escultor apresentava sua obra, valendo-se de versos dele ou recolhidos de amigos poetas. Sensitivo, místico, sacerdotal, demonstrava, sem pudor algum, saudade de si mesmo, dos seus que lhe impuseram a difícil missão do benzimento, herança de sua avó que lhe criara e de quem sentia fundo o banzo que penetra e rasga a alma sem deixar, nos vestígios de dor, explicação.
“Que saudade tenho de nascer/ Nostalgia/ de esperar por um nome/ como quem volta/ à casa que nunca ninguém habitou.”
Como era nosso primeiro encontro, confesso, naquele enorme ateliê que se juntava à galeria com obras diversas e muito bonitas, ter ficado atarantado. O artista, com profunda reflexão, apresentava, tendo por cenário seu belíssimo trabalho, o que tudo aquilo significava. Estaria assim elucidada a razão de gostar tanto, mesmo sem entender exatamente a extensão dos sentimentos dele.
Muitos encontros mais e era um prazer estar para ouvi-lo recitar, com olhos fechados, o que fundo latejava.
“Deus vive por nós!” - sentenciava.
“E regressava, como no poema, às orações. A casa voltava/ao ventre do silêncio/ e dava vontade de nascer”.
Nascer de novo. Nos mistérios da África.
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