Saudades de Maputo. Caminhar por suas ruas, recitando seus nomes. Olhar a Baía além do que a vista alcançava. Conversar com órfãos de guerra pelas ruas da cidade, muitos deles mutilados, lindos na sua pele negra e na sua fala característica misturando português castiço às línguas locais, linguajar “maninguenice” (muito bonito), como diziam eles.
Próximo ao instituto de cooperação dirigido por mim, saía por vezes a conversar com as crianças esparramadas por aquelas ruas largas e bem construídas, próximas ao cais do porto, para ouvir histórias que doíam fundo no coração jovem, mas sensível a sofrimento e dor. A maioria delas com estúpidas marcas da guerra e da ganância da metrópole tentando empurrar para longe a independência.
Dor maior só mesmo nas madrugadas quando se ouvia, do conforto de apartamento no sétimo andar de um prédio, Avenida Eduardo Mondlane, inúmeras crianças, algumas recém nascidas, despejadas num orfanato chamando por seus pais, mortos, enquanto eram juntadas a outras tantas com igual destino. Toda vez a que a vida em Maputo me obrigou a isso, procurava, dias seguintes, a caminho da Escola Sueca, onde, nas tardes quentes de Maputo, jogava tênis, passar pelo orfanato para dar-lhes afeto, num breve, mas caloroso gesto de acolhimento.
Impossível fugir de tudo isto, já que, à época, desentendia como países presentes em tantos projetos de cooperação ignoravam cenas assim, esquecendo-se destes pequeninos que, mais crescidos, seriam outra vez despejados nas ruas da cidade. Do orfanato para as proximidades do cais, onde estavam, souberam fazer dos fornos de lenha das padarias, abrigo e cobertor para frias madrugadas ignorandoa beleza do céu estrelado em local de pouca luz.
Sei haver semelhantes histórias com nossos meninos nestes brasis que se multiplicam. Miséria e desemprego não é palco só da África em guerra. A democracia brasileira sempre viveu igual violência. Só não há mesmo o horror da guerra fratricida, ao menos, por enquanto.
Não queria ter minhas lembranças perambulando por estes desvãos da memória.Isso, no entanto, também fez parte da minha passagem por Moçambique, terra de que me ocupo agora, ao pinçar experiências vividas. Alguns leitores deveras entusiasmados com este mundo, para muitos, desconhecido, tocam fundo em mim com seus comentários como se exigissem contar tudo. Bons leitores, entendem como eu que viver é sentir o correr da vida. “E a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que quer da gente é coragem”.
Coragem para contar. Estive lá. Procurei cumprirmuito além do que me foi confiado em trabalho determinado, espairecendo, com isso, miséria e dor que me rodeavam. Demorei a reconhecer semelhança entre o já visto antes de conhecer as tormentas do Boa Esperança.
Sei bem que memórias de viagemsão melhores quando falam de paisagens e alegrias. Poderia só falar disso num país belíssimo, trabalhado em contrastes e belezas indiscutíveis. Não posso, no entanto, fugir de outras verdades.
Não suponha fácil este exercício. Escrevo enquanto me sangra a alma. Vejo, no entanto, em cada frase escrita, um grupo de miúdos, pretinhos todos eles, uns em uma só perna, outros sem bracinho, outros ainda queimados em sua pele na explosão de granadas, com a mãozinha estendida, à espera de amor e de alimento. A diferença entre estes que lhes conto e os que aqui vivem se impõe na forma de abordagem. Aqueles, um jeito doce de pedir, apesar da miséria, tom suave da voz com que se dirigiam a quem soubesse olhar para eles com expressão de ternura, emprestando, ao menos no gesto, o acolhimento que desejavam ter.
Quando os encontrava já ao amanhecer, nas caminhadas que fazia, podia entender melhor a obra de Mia Couto, quando dizia da terra sonâmbula. Tinha, como a personagem, a ideia de que a terra se movia durante a noite, enquantodormiam e, ao despertar, era outra a paisagem que vislumbravam, vestida de esperança.
Esperança de quem, tendo sido visitado por sonhos bons, acreditava encontrar o que ficara na fantasia do sonho. Não era nova a paisagem nem havia outra forma de pensar entre tantos. O que se repetia, sem novidade nenhuma, era a realidade da vida no seu jeito mais cruel e mesquinho.
Quando conheci Mia Couto, também fiquei alumbrado com a terra e a gente de lá. Diferente de todos, em sua maioria pretos ou amulatados, Mia, ainda muito jovem, claro, olhos verdes, rosto bem delineado, expressão suave, cordial, muito cordial, apesar de retraído na conversa, tinha deles a forma de ser africana, gentil, como a maioria, manso, humilde, plenamente identificado com seu povo.
Aclamado por seu estilo, no trato dado à língua portuguesa, na forma como trabalha a linguagem valendo-se de neologismos e inversões sintáticas, sem falar da beleza provocada pela aproximação entre prosa e poesia nos temas abordados, é dos escritores mais aplaudidos em todo o mundo civilizado,reconhecido como um dos mais notáveis escritores de língua portuguesa em todos os tempos.
Antonio Emílio Leite Couto, carrega em seu currículo prêmios e reconhecimento que poucos receberam.Merecidamente.
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