Zé Craveirinha

Por David Chagas | 30/08/2021 | Tempo de leitura: 4 min

À minha despedida de Maputo, no Aeroporto, encontro um grupo de nomes famosos da cultura moçambicana. Artistas plásticos, músicos, jornalistas, escritores, professores de diferentes níveis, pessoas a quem soube frequentar com admiração e respeito. Alguns dias antes, em entrevista na televisão local,me despedi do povo de terra tão querida, dando por encerrado meu contato com todos eles, sem imaginar que, naquele momento, iguais manifestações de apreço me fizessem sentir, à hora do adeus, o pulsar melancólico da saudade.

O presidente da República, à época, Joaquim Alberto Chissano, figura notável na consolidação da independência do país, ascendido à presidência com a trágica morte de Samora Machel, me chamara ao Palácio uma semana antes da partida, para dizer-me adeus. Honrado, com isso, pude entender o quanto os anos em Maputo haviam deixado marcas positivas na cultura local e estreitara laços entre Brasil e Moçambique.

Fiz o que pude para estar presente em todos os espaços a que fui chamado. Nas universidades locais ofereci cursos de Literatura Comparada e Linguística Aplicada. Visitei ateliês e tratei de conhecer artistas, muitos deles, prestigiadas presenças em museus e salões internacionais.

Reuni-me com frequência com escritores e, destes, Mia

Couto, sem a fama de hoje, jovem escritor que despontava. Dois anos intensos na minha trajetória profissional capaz, por isso, de causar tormenta e dano entre os que, também brasileiros, se ressentiam de fazerem, tanto do instituto quanto de seu diretor, a referência do Brasil naquele país. Prova disso, a honraria concedida pelo Presidente da República, chamando-me ao Palácio da Ponta Vermelha, onde residia.

Nada, no entanto, me emocionou mais naquele aeroporto lotado que encontrar, numa vívida demonstração de amizade, figuras tão extraordinárias. Dentre elas, Zé Craveirinha, premiado poeta, ganhador do prêmio Camões de Literatura, admirado por quantos o conheciam e conheciam sua obra poética.

Quantos, nestes brasis, conhecerão Craveirinha. No aceno final, para fazer valer sua presença, ergueu os braços num gesto demorado e comandou o rito do adeus. Nas mãos, duas de suas obras: Cela 1 e Maria. Na inscrição afetuosa registrada na primeira página, li emocionado: “Para o amigo Zé Antonio Chagas, com a simpatia do Zé Craveirinha, desde Maputo ao Rovuma, com circuito pelo Rio, Bahía e Carnaval na Mangueira. Um abraço maningue (muito) estaleca (forte) do xará Zé Craveirinha.”

Na outra obra, recados bons a respeito dos nossos encontros recheados de lembranças poéticas, das conversas que eu, bastante jovem, mantive com aquele velho e querido senhor, atento a tudo que dizia sobre nossos escritores, em especial os poetas e, dentre eles, Carlos Drummond, de quem sabia ter sido especial amigo. Ali, fiquei certo de que fizera o Brasil mais presente e mais próximo de Moçambique, onde terminou seus dias, exilado que andava, Tomás Antonio Gonzaga, nosso poeta árcade, presença que nos honra a nós e a eles de quem muitos moçambicanos juravam ser descendentes.

Zé Craveirinha, em sua fala, reportou-se aos encontros que tivera comigo, interessado em sua obra e na proximidade poética com alguns de nossos modernistas. Repeti, ao agradecer, a satisfação de estar com ele, a começar pelo nome do bairro onde se escondia, numa vida modesta, mas carregada de livros e contatos com escritores portugueses famosos. Vivia na Mafalala, bairro cujo nome parece convidar à repetição constante, tantos a reunidos.

Mafalala! o poeta gostava de saber que o bairro periférico onde escolhera viver, em meio à gente mais simples de Maputo, soava a meus ouvidos como se fora verso ou canção. Mais que o nome do local, ouvir suas histórias sobre a razão da escolha do local, sobre a guerra pela libertação de seu país do jugo português, a que eles, os verdadeiros donos da terra, não tinham quaisquer direitos, dava-me a dimensão exata da usurpação, da opressão, da violência do colonizador português. Preso algumas vezes, teve em sua mulher, Maria, a razão primeira de resistência, e, graças a este amor, pôde suportar sua ausência e o dor imposta pela tortura na solidão da cela.

“Sou analfabeto./ A comida das livrarias/ é indigerível para mim, eu sei./ E sobre isso infelizmente só há duas opiniões/ a tua opinião quando me bates. A minha opinião quando apanho.

Sou analfabeto./ Mas na minha gramática/ ultrapasso todos os idiomas/ quando a minha pele sente na porrada/qualquer tipo de abecedário.

Olhos embargados, voz sôfrega o poeta me revelava, ainda que tardiamente, a extensão do sofrimento em décadas de dominação portuguesa. Como foram maus estes senhores! Pude saber disso ao hospedar-me, durante o apartheid, em bairro português, em Johannesburgo, e observar a forma inóspita como tratavam os negros.

Craveirinha, suave, sem exageros, apenas marcado pela dor trazida, pela memória, do demorado tempo de cárcere, e, mais recentemente, pela ausência de Maria, a esposa, presente em tudo o que pensava e dizia.

“Eu podia barbear-me/ e fresco no pijama azul made in Macau/ estendido/ ler o meu amigo Gorki/ ou apenas imaginar/ neste momento/ a mulher que eu amo./

Mas a Pátria/ de momento acontece-me/ a frio no reverso insistente da ternura/ quando nas ilhargas da cidade algures/ em cesarianas de amor/ as limalhas da ausência/ acentuam nas olheiras da gente/ o lilás velho-colono da saudade.”

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