Remexendo a memória. África.

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

Revisito o continente africano, aonde cheguei em 1990. Houvesse espaço, contariado Rio de Janeiro à viagem sobre o Atlântico, imaginando o futuro a partir do que sabia do novo território, supondo ser como ouvira falar dele. Foi surpreendente descobrir por mim mesmo, o povo e a vida africanos. Problemas? Muitos. Onde não há? A maioria causada pelo colonizador, tirano e usurpador.

O leitor, generoso comigo, concede-me a graça de leitura cuidada e correta de meus textos. Tomara, não se canse, agora, da remexida de memória que farei. Desejava guardar as aventuras ao longo desta vida que titubeia, mas avança. Deus, por merecimento, me premia, esticando o tempo para obrigar-me a escrever algumas passagens memoráveis, quando pude estar, na África, com Desmond Tutu, Nélson Mandela, Mia Couto, Zé Craveirinha, Alberto Chissano, Chichorro, José Saramago, sem falar, é claro, das festas, no divertido e interessantíssimo Reino da Suazilândia, hoje, Essuatini.

Aí pude saber deMswuati III, filho do rei Sobhuza II, com uma de suas 120 esposas. O atual soberano seguiu o rito da poligamia escolhendo esposas a cada ano, por ocasião de seu aniversário natalício. Quando deixei o continente ele já caminhava a passos largos constituindo seu clã.

Antes de saber das peripécias do rei, quanto agradeço aos nomes já citados, ter podido enriquecer-me a vida com sua sabedoria e grandeza humana. Do reino, guardo memória dos passeios pela selva visitando reservas as mais interessantes, tanto que fizeram, dos safáris, meu passeio preferido nos diferentes países do continente. Mswati, coroado, graças à intervenção materna, regente antes dele para garantir-lhe o trono em meio a tantos herdeiros, gostou do poder e só não ousa mais para evitar sanções ao apoio internacional.

Este deslizar na memória começou em artigo contando amizade com Carlos Drummond ao longo de anos. Revivi, com isto, costume de meu avô materno, Major David, trocando correspondência com figuras notáveis da literatura e do jornalismo brasileiro, ao final do século XIX.

A aproximação com Drummond me trouxe Pedro Nava, José Mlindlin, Zuenir Ventura, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector, Luís Fernando Veríssimo, Lígia Fagundes Telles. Em visitas a Drummond, pude conhecer melhor sua obra, suas histórias, sua vida. Levei comigo notícias da cultura paulista, do nosso jeito de ser caipira, de seu particular interesse, e de Cida Bilac e Luiz Martins, poetas nossos, pouco conhecidos, mas que tiveram merecido reconhecimento do célebre mineiro.

Uma história a tocar outra, lembranças misturadas, lágrimas, por vezes, arrependimento, outras tantas, e um desejo incontido de rever, de refazer o feito, de reencontrar pessoas, algumas já mergulhadas no mistério, me entrego à pena e ao papel, e rabisco.

Johannesburgo, África do Sul. Alguns dias aí me permitiram, naqueles anos distantes, conhecer o horror do apartheid e experimentar restaurantes com luxo e requinte inigualáveis o que me fez entender melhor tudo o que já disse antes sobre quem domina e o constrangimento imposto aos dominados.

Ao deixar o território sul-africano assumi, o compromisso de voltar. Não supunha tantas vezes. quantas! Algumas delas, por ser a capital econômica do país, outras, local para traslado de voo a outros destinos; outras, ainda, para estar presente em eventos memoráveis em honra do mais notável e universal de todos os homens que pude conhecer: Nélson Mandela.

Encontramo-nos a primeira vez em Maputo. Depois, em casa de Graça Machel, uma reconhecida defensora dos Direitos Humanos em Moçambique, a quem conheci Ministra da Educação de seu país. Ex-guerrilheira na Frente de Libertação de Moçambique, nas lutas pela independência, ao lado do primeiro marido, o presidente Samora Machel, de quem herdara o sobrenome, escreveu sua própria história, com grandeza e dignidade, antes de tornar-se, também ela, figura pública em todo o mundo, ao unir-se com Nélson Mandela.

Conheci diferentes cidades da África do Sul. Queria, no entanto, estar em Durban e, aí, na Durban High School, onde Fernando Pessoa estudara, ao longo de dez anos. Não vale explorar a razão que o levou a Durban, depois da morte de seu pai, mas o interesse que demonstrou anos mais tarde, ao viver num país marcado pela consolidação da hegemonia britânica, até meados do primeiro quarto do século XX, cultura montada no ideário calvinista, a que devotou admiração e entusiasmo, responsável por moldar sua educação, em tudovoltada para padrões ingleses, explica muito deste poeta multifacetado.

Estando na África do Sul, voltar a Maputo para estar no sétimo andar da avenida Eduardo Mondlane onde vivia, e vislumbrar da sacada, no canteiro central da longa avenida, um caminho de flamboyants, de encher a vista e a alma, em tempos de floração. Outro prazer, entregar-me à Baía de Maputo, distante duas quadras de meu apartamento, de modo especial em noites de lua cheia, observando o marao recolher para si a prata do luar transformando o azul do Índico.

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