Devo contar

Por David Chagas | 08/08/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Na minha cidade, para entrar na agência de determinado Banco, é preciso subir rampa, sem nobreza alguma, feita para mortais comuns. Movimentadíssima durante horário comercial, à noite, livre de pedestres, vira quarto de dormir aos que vivem em situação de rua.

Há, no entanto,destes hóspedes, um que, dia destes,me chamou a atenção. Trazia consigo alguns livros e um punhado de jornaispara servir de colchão e travesseiro à hora de dormir.

Ao chegar à agência, sentado ao chão para garantir lugar lê com atenção e cuidado um deles, sem preocupação com data. Dia destes, ao cumprimentá-lo, proseamos.

Fala interessante, resultado por certo de leitura boa, contou-me a razão de sua opção de vida e porque faz deste espaço seu lugar de repouso. Luz suficiente para ler à noite, e paredes fazendo barreira à velocidade do vento.

A praça em frente deixa ainda mais frio o local, exibindo, com clareza, as diferenças sociais dos brasis ao expor vulneráveis.
Mais um pouquinho de conversa, tempo suficiente para contar-me ter acabado de ler artigo em jornal cujo redator lhe pareceu insensível à sua miséria por revelar prazer pelo frio, celebrando agosto com temperaturas baixas.

Agosto. Gosto do vento que me traz agosto.

E como gosto! Gosto do sol de agosto, todo dia! E quanto gosto! Da florada de ipês em ouro e luz, dos manacás da serra colorindo paisagens e enchendo de cor o chão ao despedir-se do tronco onde floriu, da temperatura amena.
Por que gosto? Agosto foi quem, a gosto de Deus, revelou à luz os dias meus.

Ouvi atento, mesmo sabendo ter sido eu o responsável. Acabrunhado, pedi licença para entrar e pagar contas. Tivesse retirado algum dinheiro, talvez me envergonhasse disto. Para sorte minha, em tempos bicudos como estes, só resta mesmo pagar contas.

Para trás, o prédio do banco e o velho escritor arrependido por não ter pensado nos que vivem do olhar solidário da cidade.
Mas em que outro mês, dentre os doze, me permitiria falar do sol em dourado tom, vento, frio em meio à explosão de ipês amarelos, brancos, de manacás da serra, e contando, em meio à friagem com a boa companhia do centenário Jornal de Piracicaba?

Quantas histórias! Haverá um tempo em que não mais estarei aqui para celebrar a publicação diária dos acontecimentos da cidade. Outros, no entanto, farão isto por mim com igual entusiasmo.

Pude aprender datilografia. Conheci a linotipo. Hoje, multiplicam-se programas que me permitem trabalhar no computador e saber que reproduzirão meu texto à perfeição, no diário impresso. Quantos, na atual geração, puderam conhecer isso tudo ou saberão de que se trata?

Lembro-me, à época, o velho Benoni, amigo de meu avô e seu fiel servidor, ensinando-me como se trabalhava um jornal na fase anterior à máquina que fundia em bloco, cada linha de caracteres tipográficos. Como me encantava vê-las trabalhando. Tinham um quê de modernidade no seu tempo e quase não se utilizava mais pinça para elaborar títulos. Ali, com os linotipistas, imaginava o velho jornalista, fins do século XIX, entre a redação e a oficina gráfica, diagramando seu jornal, agora, distante de nós e já beirando seus cento e cinquenta anos.

Revisito tudo isso, todo ano, quando, em agosto, debruço o olhar sobre o JP para homenageá-lo contando um pouco dos meus quase cinquenta anos frequentando páginas de jornal. O motivo de agora é homenagear o Jornal de Piracicaba por Dr. Losso, Dra. Antonietta e Dr. Marcelo Batuíra. Se há, por estes tempos, alguém a quem também devo agradecer, é Fernanda Moraes, sua atual editora. Ao proceder assim, digo ao leitor haver alguém que coordene os trabalhos do jornal, dando-nos pauta, organizando reportagens, textos, crônica, anúncios e tudo o mais que se publica antes que chegue a suas mãos. Parece fácil. Não é.

Quando me obriguei a isso, aqui ou em outro periódico onde estive, tinha especial prazer na atividade que se antecipava ao jornal impresso. Descobrir a manchete, encontrar a melhor fotografia, reunir-me com editores de distintos cadernos, saber o que chamaria mais a atenção do leitor ao aproximar-se da banca onde se vendem exemplares ou em casa, para atrai-lo convidando-o a entregar-se de imediato à leitura.

Fernanda Moraes é quem escreve, seleciona, prepara e permite ao jornal estar na rua no horário devido. Por ser trabalho estressante, chama-me a atenção, no burburinho e tensão do fechamento, a forma delicada como resolve os erros que, por vezes, cometemos. Friedrich Nietzche entendia com rara simplicidade a situação e afirmava que entre as condições de vida, o erro se estabelece.

Quis, nesta manhã de domingo, ter o leitor como companhia para passear comigo por estas linhas, aplaudindo o Jornal que lê há cento e vinte e um anos,sem saber, por certo, que uma jovem senhora, guardada em beleza, é a responsável pela forma final do matutino que lê, com prazer igual àquele do início do século passado, quando o jornal era o meio de comunicação mais imediato de que se tinha notícia.

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