Na Conselheiro Lafayette

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

De 1972 em diante, não sei dizer quantas vezes estive lá, visitando o poeta na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro. Jamais poderia supor, no fim da adolescência, que o maior poeta brasileiro do século XX, reconhecido em todo o mundo, pudesse ter a afabilidade de receber um garoto no final de seu curso secundário, por ter apreciado um trabalho escolar a respeito de sua obra, vendo qualidades que só um ser humano como ele poderia encontrar.

Por trás do seu jeito sério de ser que parecia trazer dentro de si o sentimento do mundo, alargou nossa amizade de tal forma que me permitiu conhecer outros nomes da literatura e estar com eles, graças a sua intervenção. Foi assim que cheguei a Zuenir Ventura, Lígia Fagundes, Pedro Nava e a outros seus amigos recebendo deles igual acolhimento.

Jamais saí de lá sem ter nos livros que carregava comigo e outros tantos que me oferecia, autógrafo do autor, quase sempre poéticos, brincando com meu nome a que, medido, em sílabas longas e breves, numa trova sua, me informava ser decassílabo perfeito. Meus pais, por certo, jamais pensaram nisso. Contei-lhe os motivos para nome tão longo. No meu nome, por certo, esgotaram homenagens, promessas feitas, costume da época em que nasci, e nome de família de um e de outro que carrego comigo com honra e orgulho. Minhas irmãs, por certo, somam comigo neste reconhecimento.

Neste ritual de visitação à casa do poeta, da primeira vez, olhar demoradamente os quadros na parede assinados por grandes nomes da pintura brasileira; em outro momento, estar com Maria Julieta, sua única filha, que, em visita ao pai, chegara de Buenos Ayres. Encontrar, numa destas minhas passagens pela Conselheiro Lafayette, com dr. Mindlin, importante empresário em São Paulo, vida dedicada à cultura, à arte e, principalmente, à literatura brasileira, nesta altura, também ele, especial amigo meu, fez-me ainda mais próximo de Carlos Drummond.

Depois disto, certa feita, acompanhado de dois alunos meus, para que pudessem, comigo, dar ao poeta o prazer de trocar conversa com jovens estudantes, alunos meus. De Copacabana fomos à Glória para viver uma tarde de encantamento na companhia de Pedro Nava, apreciando suas pinturas, sua conversa vívida, sua alegria transparente e suas bochechas gordas e rosadas, como de um velho e querido avô, graças ao poeta.

Drummond era de um humanismo largo, acolhedor, sabia estar com a juventude e falar com ela. O seu jeito altivo, recatado, ganhava fôlego distinto e desenhava sorriso, se não evidente, facilmente percebido. E perguntava de tudo ou relatava outras tantas coisas que eram de interesse da idade. Nada de querer saber se andavam lendo, que escritores lhes agradava. Contava-lhes, com sabor carioca, o bom de ter feito das escolas por que passou tudo o que um jovem faz: escrever, ler, namorar, envolver-se em política estudantil, travessuras sérias a ponto de ser expulso de colégio em Belo Horizonte, para anos passados, vir para o Rio, cidade onde a natureza insiste em embrulhar com verde o que o homem constrói, querendo destruir e acabando por ganhar contorno dos mais belos. Quantas vezes o ouvi repetir, indignado, que o Rio de Janeiro era das poucas cidades onde a mata insistia em permanecer, apesar dos homens e seus governantes.

Em datas especiais, chamava-o ao telefone. Certa feita, numa sua raríssima aparição na televisão brasileira, rotulado que era por todos como “triste, orgulhoso, de ferro”, em entrevista a Leda Nagle, âncora de noticiário televisivo vespertino, vali-me do telefone para manifestar minha alegria por tê-lo conosco, em casa, conversando com a jornalista. Gostou do exagero e contou a razão de ter cedido àquela conversa pela idade grande que comemorava.

À morte de Vinícius de Moraes, eu em São Paulo, pela televisão, impressionado com seu abatimento durante o enterro do poeta camarada, tratei de falar com ele. Confessou-me a razão de seu abatimento. A morte súbita de Vinícius se juntara à crise de herpes no rosto, com dores terríveis. Abatimento no corpo e na alma.

Assim era Carlos Drummond de Andrade, com seu jeito sucinto, modesto, seco, até ranzinza, como diziam tantos, dentre eles, Décio Pignatari. Não foi este o poeta que encontrei. Penso que viu em mim um pouco dos netos. Dizia-me histórias do Estado Novo e, com detalhes, a razão de ter servido ao gabinete do Ministro de Educação. Tão importante e tão simples.

O poeta concretista de que falei acima diz que o ponto alto de sua obra – A Rosa do Povo – “é quando estava voltado para a banda esquerda” justamente o período em que foi oficial de gabinete de ministro “estadonovista”. Nada disso. Drummond seguiu à risca o que disse, ao nascer, o anjo torto: gauche na vida! Contrário à realidade, levando consigo este sentimento de inadequação perene, o avesso do que parecia ser. Podia, na mineirice presente, mas inativa, aparentar certo provincianismo, certa ranzinzice.

Era elegante e discreto. Respondia as cartas de seus leitores com presteza e simpatia. Fui um deles. Colecionei inúmeras com correta e delicada avaliação de meus textos. Soube, primeiro por seus poemas, depois, por ele de suas histórias, do pai que, na sua infância, montado a cavalo, ia para o campo. Da mãe, sentada, cosendo. Da filha, que o antecedeu na morte e por quem, em menos de dez dias, morreu de amor.

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