‘A inspiração surge e não consigo parar, preciso compor’, diz Mahle

Por beto.silva |
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Nesta entrevista ao Persona, o maestro fala de sua trajetória, de sua dedicação à música e inspiração para compor.

No dia 3 de janeiro o músico e maestro Ernst Mahle completou 92 anos de idade. Nascido em Stuttgart, na Alemanha, ele e os pais Ernst Mahle e Else Mahle (Wurth) chegaram ao Brasil em 1951. Começou a estudar arte na Escola de Música Pro Arte com o professor H.J. Koellreutter, em São Paulo em 1952. No ano seguinte, ele e um grupo de amigos fundaram uma unidade da Pro Arte em Piracicaba.

Nessa época, Ernst passou a dar aulas semanais em Piracicaba e, em 1955, se casou com a piracicabana Maria Apparecida Romera Pinto Mahle, a Cidinha, ex-aluna de Koellreutter e uma das fundadoras da Empem (Escola de Música de Piracicaba Ernst Mahle).

Com o volume de trabalho cada vez maior, em Piracicaba, o casal se fixou na cidade onde tiveram os filhos Ernesto, Cecília Elisabeth (já falecida), Claudio, Ricardo e Leonora.

A família cresceu com os netos Erick, Sebastian, Cecília e Inês e mais recentemente com uma bisneta, que completa um ano na terça-feira (29), filha de Erick, o neto mais velho e de Sylvia.

No ano passado, devido à pandemia de covid-19, Mahle, ficou recluso. Neste ano, ele se mantém longe das apresentações ao vivo e para o público, mesmo assim, o artista está com muitas obras inéditas.

Na avaliação da esposa, 2020 foi o ano em que ele mais compôs. O maestro criou concertos para diversos tipos de trios, para flauta, violino e harpa, para saxofone, viola e violoncelo; também compôs um concerto para tuba e sanfona, outro para fagote e sinfônica e para dois violoncelos de corda.

Neste último ano, Mahle fez uma canção em cima de um poema de Ezio Pezatto. O maestro ainda escreveu poemas.

Em 2019, quando completou 90 anos, o ano foi de homenagens ao maestro. Concertos e exposições marcaram o aniversário.

Entre as homenagens, está a da OSP (Orquestra Sinfônica de Piracicaba), que dedicou o seu concerto de outubro ao maestro alemão.

O programa trouxe uma das obras mais conhecidas de Mahle, a peça sinfônica “Festa no Céu”, de 1992, inspirada em um conto folclórico homônimo do escritor Monteiro Lobato. A peça tem um caráter histórico descritivo e os personagens da história são representados por sons de instrumentos, para que o público associe os timbres da orquestra, intercaladas pela narração da história, aos cuidados de Norberto Vieira.

As homenagens, no entanto, não se restringiram a Piracicaba. Mahle foi homenageado no Conservatório Dr. Carlos de Campos, em Tatuí. Para a homenagem, foi organizado o 14º Concurso Interno de Piano em que os participantes tocaram obras assinadas pelo homenageado.

O ano de 2020 também foi de homenageado, desta vez, pelos 67 anos de fundação da Empem, referência em ensino e divulgação de música no estado de São Paulo. A data foi celebrada com concerto especial.

A Empem foi fundada em 9 de março de 1953 com o nome de Escola Livre de Música Pró-Arte de Piracicaba, uma filial da Pró- Arte de São Paulo. Os pilares, seus criadores, são Cidinha e Ernst Mahle, junto ao músico e compositor Hans Joachim Koellreutter (fundador da Pró-Arte na capital).

De acordo com o histórico da Empem, professores, médicos e pessoas ligadas à área cultural da cidade também estão diretamente ligados aos primórdios da tradicional escola de música em Piracicaba.

À época da fundação, Mahle assumiu o cargo de diretor artístico, enquanto Cidinha assumiu a administração e, Koellreutter, o cargo de supervisor geral. Os registros da Empem mostram que, em pouco tempo, a filial piracicabana suplantou a matriz de São Paulo em número de alunos matriculados.

Outro dado relevante na história da Empem data de Ernst Mahle fundou naquele ano a primeira Orquestra Infantil de Piracicaba, para a qual comprou e adaptou instrumentos e realizou arranjos de músicas folclóricas.

Nesta entrevista ao Persona, o maestro fala de sua trajetória, de sua dedicação à música e inspiração para compor.

Como a música entrou em sua vida e quando o senhor percebeu que viveria dessa arte?

Sou filho de pai e avô engenheiros minha profissão seria, pela ordem natural, que eu também estudasse engenharia. Quando criança só estudei flauta doce, com muita facilidade, aos 8 e 9 anos de idade, numa escola em Stuttgart. Mas aquilo que eu realmente gostava era de fabricar carrinhos elétricos, na garagem de meu pai. A guerra e os bombardeiros mudaram muito a nossa vida em Stuttgart e meu pai resolveu nossa mudança para a Áustria, onde tínhamos uma casa de verão. Muitos de meus colegas, que como eu, nunca haviam segurado uma arma tiveram de partir para o “front”, aos 16 anos de idade. Eu só não fui por ter muita facilidade para lidar com mecânica e fiquei então trabalhando numa fábrica de peças para avião, na fronteira da Áustria–Alemanha. Terminada a guerra os franceses, sob cuja “tutela” se encontrava a região de Voralberg, onde eu morava, na Áustria, sabendo que os habitantes daquele lugar gostavam muito de música, tiveram a ideia de trazer jovens muito talentosos do Conservatório de Paris para se apresentarem ali. Fiquei maravilhado e achei que eu queria ser músico, pianista, por exemplo. Tinha na época 17 anos. Mas me esforcei exageradamente, querendo aprender tudo muito rápido. Consegui apenas uma irreversível tendinite. Tentei outros instrumentos, mas depois achei que não ia desistir de estudar música. Para improvisar, ao piano, eu tinha muito jeito e foi graças a isso que consegui uma vaga na classe de composição do prof. Nepomuk David, no Conservatório de Stuttgart, pois acabamos voltando para minha cidade, após o término da guerra.

Quando o senhor e sua família chegaram ao Brasil e como foi para o senhor, ainda uma criança, se adaptar ao novo país?

Chegando ao Brasil em 1952, comecei a estudar com Koellreutter, na recém fundada Pro Arte de São Paulo. Estudei vários anos com Koellreutter, voltei e participei de cursos de férias com célebres professores na Europa, etc… e depois trabalhei muito com os alunos da recém fundada Escola Pro Arte de Música de Piracicaba. Comecei fazendo arranjos e peças fáceis para esses estudantes e depois acabei compondo para seus professores e outros artistas que me pediram para também escrever para eles… A fundação da Orquestra Infantil da Escola de Música de Piracicaba – EMP, em 1955, muito me impulsionou a fazer arranjos para as crianças, pois não havia nada do gênero, na época. Evolui com elas e acabei compondo, cada vez mais.

Desde qual idade o senhor compõe e quantas obras produzidas o senhor tem?

Creio que desde os 22 – 23 anos, comecei e depois não parei mais. Tenho composições e arranjos para todos os instrumentos: coro, orquestra, ópera, ballet. São inúmeras obras. Sempre tenho ideias e pessoas que solicitam algo de mim.

O senhor completou 92 anos este ano e continua produzindo, o que lhe inspira a produzir novas obras?

A inspiração e as ideias surgem e não consigo parar; tenho de escrevê-las, preciso compor.

A Pandemia da covid-19 influenciou ou tem influenciado em sua criação? De que forma?

Fico mais em casa, permaneço em meu “studio” compondo e atendendo a pedidos de ex alunos, professores, etc… Cada vez acho mais que a música ajuda muito em situações como essas que estamos vivenciando, pois ela nos absorve e anima.

A impossibilidade de participar de apresentações tem contribuído a fim de que produza mais obras?

Não encontro muitas explicações para isso, mas pode ser, pois tenho mais tempo, não dou aulas, nem estou mais ensaiando ou regendo.

Quando o senhor inicia a composição de uma obra, para quem o senhor está compondo, uma pessoa, um grupo, para quem, o senhor dedica a obra?

Ao iniciar uma composição, por exemplo, para um ex aluno sempre me lembro da maneira que ele gosta de tocar; para quem eu não conheço, mas sei pelo seu estilo também penso um pouco sobre isso. No mais a inspiração flui e a composição aparece.

Este momento enfrentado pelo mundo, pelo Brasil com a pandemia lhe inspira de alguma forma?

A pandemia nos dispõe mais a pensar ou pelo menos deveria ser assim. Temos de aproveitar melhor nosso tempo de vida, realizando mais para nós mesmos e também para os nossos semelhantes.

No ano passado o senhor lançou um Catálogo com as principais obras, como tem sido a procura desse material e quem pode ter acesso?

Sim, meu Catálogo 2020 tem sido procurado e solicitado com maior frequência, mas, daquela data para cá, já escrevi 41 novas composições e 3 arranjos, especialmente música de câmera, para duos, trios e um sexteto.

O senhor pensa em se aposentar?

Que quer dizer aposentar? Se fosse por idade eu já estaria completamente fora de fazer qualquer obra musical. Vou deixar essa resposta para Deus; continuarei trabalhando enquanto ele quiser.

Beto Silva
beto.silva@jpjornal.com.br

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