Celebrações

Por David Chagas | 27/06/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Sempre tive prazer nisso. Desde pequeno. Começava o mês e eu me entregava a descobrir nele o que teria sido bom no já vivido, esperançando o porvir. De tanto exercitar, acabei por fazer bons dias bons, ao longo dos meses, a memória a cavocar lembranças, fazendo celebrar renovação e vida de alguém por quem tinha e prossigo tendo admiração e apreço.

Pequeno, gostava de março. Desde o primeiro dia. Pessoa da minha bem-querença fazia saber que o mês se instalava. Se a pessoa a quem me refiro ler o texto saberá que falo dela, quem do primeiro de março seu dia bom. Se não ler, o texto é de quem me lê. Milagre da crônica.

Naqueles tempos de riacho límpido, fresco, o morro abissínio, guardando mistérios, sem revelar o escondido por trás dele, eu menino, entre mangueiras e gado, tendo ao meio disso a ferrovia ensinando a contar horas com o apito dos trens, trafegava por março com especial prazer tantas coisas guardava.

Demorei a descobrir a razão disso, do porquê do primeiro dia do terceiro mês ser distinto, fazendo das manhãs e tardes, daquele ambiente bom, serem festivas. Manhãs de Graúna.Noites delliciosas ao pé da escada, cantando, correndo em busca de pirilampos, vida sem maldade, fraternal.

Tudo distante naquele pedaço de terra. Perto mesmo, Mangueiras estendidas por toda a extensão e o gado, livre o dia todo, pastando morro acima, morro abaixo, dando movimento à paisagem, encantando o olhar dos pequenos na distância, tão diminutos eram, e assustando com seu tamanho quando se caminhava entre eles. Era preciso o pai, entre nós para ter certeza de que, a seu lado, nada aconteceria.

Vivíamos ali, naquele conjunto de casas. Umas próximas às outras. A escola onde a mãe lecionava, numa passada larga, já estaria nela. O italiano Bepino em seu armazém nas cercanias oferecia produtos de qualidade boa e variados. Distante mesmo era a igreja cuja lembrança a memória não guarda.

À época, chamávamos de conjunto de casas. Hoje, como se chamaria aquele lugar feliz, com trepadeiras nas cercas, árvores centenárias ocupando espaços vazios, sol, céu, e o morro segredando por trás dele, um lugarejo que, descoberto anos mais tarde, causou deslumbramento.

Da casa, o que me toca fundo, é a lembrança da vista que se abria a partir da sala da frente. Nela, todos nós, os seis. Os pais, jovens, muito jovens, semeando vida entre os filhos, permitindo acumular histórias entre passeios em final de tarde. O assoalho, motivo de festa para os pequenos, a saber quem montava com primazia o escovão tocado pelo pai que embalava a filharada cantando canções. À mesa de jantar, encontros de poesia e histórias revelados pela figura materna, professoral e amiga.

Ao som de canções, hoje, desconhecidas, na última casa daquele conjunto, o mês estava definitivamente inscrito no calendário do ano. Por ela, a amiga de quem falei antes. E celebrávamos, e cantávamos e dávamos vivas até sem saber o porquê de tudo aquilo. Precisava? Nada mais que nós mesmos e a alegria própria da infância desprovida de maldade e medo, tanta verdade havia. Nada fantasiava o real. Diferente de tudo o que se faz hoje, com histórias inventadas, motivos falsos, temas lançados por modelos estrangeiros. Sem contar a disputa por saber quem oferecemaior e melhor reunião a filhos que queriam mesmo era correr pela rua em corre-corre sem fim.

A diferença está exatamente nisso. Nossa brincadeira tinha cheiro e sabor de infância. Nada nos amedrontava e o pega-pega, o lenço atrás, a queimada, o balança-caixão era igual para todos em constante renovar de esperanças.

Salto dois ou três dias como faria num tabuleiro a jogar dama e chego a outros amigos. Dois, na minha cidade. Outra, distante de mim, em mineiras terras, onde a vida é montanhosa e o sentir é dentro e fundo.

Em março, ainda, celebro Francisco, o Papa. Dele cito o nome porque agradeço ao Espírito de Amor de Deus tê-lo conhecido um dia e saber que março ganhou luz nova desde sua ascensão ao trono dePedro. Trono? Não para ele. Assentou-se em mesa comum, com moradores de rua para celebrar a Palavra e amentou ainda mais, em mim, o décimo oitavo dia como se fora quem me trouxera nos braços a Maria Clara a quem suspiro fundo e canto:De onde vem o clarão/ que nesta noite me alumia?/ De onde o sol, na manhã,/que brilha sobre o meu dia?/ E de onde, a claridade/ que, na vida em fim de tarde,clareia estes dias meus?

Me vem de Clara,/ esta Maria nascida/ das mãos perfeitas de Deus!/ Clara, clareza, claríssima/ Maria seja teu nome./ Por ser Maria, tão nítida;/Por ser Maria, tão clara;/ Por ser Maria, ó Maria,/ desde pequena, menina,/ iluminando meu dia!

Naqueles anos, meus pais, vivos, indicando o caminho a seguir, distantes, um do outro, por dois anos e dois dias. Em março. Graças a este duplo festejo, março era nosso. Mal começava e já esperançávamos pelo final dele para celebrá-los no tempo que, conosco, lhes tocava viver.

Só quando jovem,na universidade, Vieira me permitiu entendermelhor o sentido do tempo. Ensinou-me “a cuidar da eternidade, já que os bens temporais devem ser cuidados em função dos eternos”. Fogueira,balões,dança, no silêncio imposto, de nada importa. Importa a música para enaltecer junhoe seusencantos.

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