Cachaça e reza bem combinadas

Por David Chagas | 30/05/2021 | Tempo de leitura: 4 min

Os teóricos da linguagem ensinaram a ver, nas funções dela, como separar joio e trigo. Impossível não observar, mesmo numa leitura superficial, ter, Francisco, ao longo de seu pontificado em tempos tão conturbados, demonstrado quase diariamente devotamento especial aos vulneráveis, às minorias, aos Filhos de Deus todos, como ensinou um dia o poeta Manuel Bandeira.

Solidário, Francisco sempre oferece, no gesto, no olhar, na palavra espontânea ou pensada, o melhor de si em favor do outro, demonstrado no sorriso aberto, na expressão de acolhimento e amizade. Não foi diferente neste dia de maio. Por sorte, muitos entenderam que o papa brincava mesmo havendo por trás disso alguma crítica associada, como de costume, à alegria do evangelizador, na enorme responsabilidade de difundir e fazer entender o Evangelho de Jesus Cristo.

Os mais formais, por certo, não terão gostado da fala de Sua Santidade, mesmo com a delicada bênção final, ao esboçar, brincando, o excesso de cachaça e a falta de oração num país sem salvação. Não reconhecer o tom de brincadeira é ignorar o aspecto cultural que tanto a bebida quanto à oração traz em si. Importante lição dada por Barthes, teórico da linguagem, exige observar o conjunto que envolve o acontecimento e, havendo fala, o contexto em que se dá para seu completo entendimento.

Não quero, aqui, fazer do meu entendimento, verdade. Quero, isto sim, chamar atenção a tudo o que envolve o acontecimento, fazendo disso paradigma para entender, com igual facilidade, a fala do dia a dia entre todos, observando texto, gesto, face e olhar. Observar a contagiante alegria papal ao se referir ao Brasil de modo natural, espontâneo, sem crítica evidente aos descaminhos por onde tem andado este país, dá sentido novo a toda fala do Sumo Pontífice.

Trazer determinado conceito acerca da palavra sem dar-lhe a oportunidade do sentido figurado ou a quem faz uso dela das múltiplas possibilidades de sentido que tem, seria empobrecê-la impiedosamente.

Aproveitar-se da expressão usada por Francisco para elaborar, a partir disso, o que guarda em termos históricos, sociológicos e antropológicos a dita cachaça, é empobrecer por demais o palavreado papal naquela tarde vaticana.

Os que abominaram a fala devem guardar em si determinados conceitos, acrescidos de outros tantos preconceitos por entenderem que o papa evidenciava aspectos negativos acumulados pelo desdém do pensamento colonizado.

Se na pobre análise que faço enfatizo o sentido preciso do termo é porque pretendo dar valor metalinguístico às variações de entendimento que uma fala como esta suscita. Provoco reflexão mais suave em relação àquela da reza e da bebida aos adeptos da formalidade excessiva própria da Vaticana igreja antes de Francisco e sugiro pensarem nossa cultura ainda jovem e, portanto, esperançosa de ver incorporar-se nela o que é do povo, nascido no seu meio e parte integrante da sua própria história.

Papa não pode brincar? Papa não pode fazer piada em torno de nada e ninguém, por ser o supremo sacerdote da Igreja Católica? Ora bolas, não só pode, como deve. Sua Santidade fez o comentário de forma natural, sincera, verdadeira, revelando, inclusive, saber que este é um ponto de identificação cultural. Abordar aspectos culturais com seriedade não implica tristeza. Falar sério é ser objetivo, ser consistente, ter fundamentos no que afirma com dados que revelam conhecimento e análise. E Francisco sabe muito bem como referir-se ao Brasil não só por ter sido nosso vizinho, mas estudioso da nossa gente.

Aliar-se à alegria, ao afeto, ao humor, deveria ser prática entre bons pastores. Portanto, entendo ter sido feliz Sua Santidade, ao falar da água que arde, que queima, e, de pronto, impondo sua mão sobre a testa do sacerdote paraibano parao sinal da cruz, símbolo do perdão, da salvação e do amor, atendendo ao que pediu em favor do povo brasileiro.

Ao valer-me da lição recolhida em Barthes sobre metalinguagem, dou à fala do Papa outros tantos significados que me interessam, sobretudo aqui, em Piracicaba, onde Antonio apadrinha o povo convidando a lembrar todo dia o famigerado Sermão aos Peixes, recuperado no século XVII pelo padre Vieira, em São Luís do Maranhão, estabelecendo comparações válidas até os nossos dias.

Se o leitor puder saber que o traço mais significativo destes estudos da linguagem é dar a perceber o traço mais significativo da palavra e seu caráter de imagem, já descobriu, na fala de Francisco, seu melhor sentido, além de reconhecer que “Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria]. Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos… Essa, a alegria que Ele quer”.

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