Tudo, agora, nas mãos de Deus

Por David Chagas |
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Segundo ano em que os dias se repetem e as madrugadas vêm ensombrecidas, como se devessem desvanecer a esperança. Não fosse o sopro inicial de amor, por certo o natural resplendor da vida se ofuscaria.
Sou afeiçoado a abril. No despertar do ano, desde menino, sonhava com manhãs e tardes deste mês em curso. Há brisa capaz de fazer esquecer verão recém terminado, chuva pouca e nunca exageradamente brava, céu, límpido, claro, com chumaços de nuvem em ramas sugerindo. Desde sempre assim, como lhes conto agora.
Ano passado, vírus raivoso chegou calado, atrevendo-se a ser. Conseguiu. Matou um, matou outro alcançou milhares com sua malignidade, esparramou desconfiança, medo, horror deixando um rastro maléfico em todo o mundo. Não bastasse o mal já existente chegou mais este para, num roldão, levar um punhado de gente.
Quantos amigos se foram sem ao menos um aceno. Amigos de quem nos aproximamos em repouso, com absoluta tranquilidade, para conversa sem medo, de igual, quando nada incomoda, tudo contribui. O Pai da Mentira, capiroto maldito, demônio pode nele esconder-se sem que ninguém saiba. Outros há que o cultuam como possuídos pelo desejo do mal e esparramam seu veneno invisível. Foi exatamente assim que, no ano passado, abril perdeu sentido, deixando dia e noite iguais na tormenta, como se a aurora já não pudesse armar o dia.
Nestas últimas semanas, abril em curso, me vi obrigado, em silêncio, a celebrar cerimônias de adeus que me maltratam e impedem sentir o que antes sentia por estar em abril.
Tudo o que implica separação, perda, incomoda, fere, bem sei. Há quem não sinta, bem entendo, e me compadeço quando assim procedem. Não só a morte rompe o curso da vida. A saúde, quando se esvai, dói igual. É perda. Daí que nestes tempos pesados em que vivemos é preciso ter misericórdia dos médicos e demais profissionais da saúde. Como têm sido sacerdotes estes apóstolos do bem. Sofrem. Sofrem muito, a não ser que tenham perdido o sentido da vida, antes mesmo de estarem a serviço dela.
Se humanos como prometeram em seu juramento, deprimem-se porque foge deles, muitas vezes, a possibilidade de restituir a vida.
Nunca soube bem como lidar com isso e jamais me envergonhei de dizer. Entendo haver limite para estar. Deus lavrou ata: tempo de nascer. Tempo de morrer. Tempo de plantar. Tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de curar. Tempo de matar. Tempo de rir. Tempo de chorar. Tempo de prantear.
Temos vivido a verter pranto nestes últimos dezoito meses. Quantas perdas, meu Deus! Para alguns, a visita da indesejada tem sido extemporânea. Para outros, alarga o tempo fazendo supor que os teremos sempre e para sempre. Quando vem e corta, fere. Sangra. Maltrata o espírito, com uma série de perguntas sem resposta.
Há quinze dias, fiz um último aceno a político, citado em prosa e verso por outros tantos que, se leais, mais deveriam segui-lo ao invés de citá-lo. Para ele, o ser político é para corrigir injustiças, tornar justo o que é injusto. Concepção idealista ditada por Platão, discípulo de Sócrates, com quem aprendera, fiel seguidor desta lição de verdade e vida.
No Eclesiastes, Deus avisara que desenhava os dias com alguma alternância, com ganhos e perdas, tudo segundo Sua vontade e para o bem do mundo. Difícil é saber a razão dos sinais que projeta diante de nossos olhos.
Para quem, como eu, aprendeu com os seus e ao longo da vida a não viver superficialmente, a separação definitiva marca fundo ao exigir enfrentar a dor. Ajuda entender que não há falta na ausência.

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