A Redação

Por José Faganello | 17/03/2021 | Tempo de leitura: 3 min

“Mais vale tentar e errar do que não tentar” (anônimo)

Não conseguiu dormir direito. No dia seguinte iria, pela primeira vez, frequentar a nova escola, pois teve de insistir durante o ano todo com seus pais. Finalmente conseguira o que tanto queria. Seus colegas já se haviam mudado. Com um ano de atraso, seu desejo fora atendido. Todos diziam que ela era muito melhor. Além de excelentes professores, possuía um ambiente gostoso. Tudo limpinho. Tudo em ordem, sem, no entanto oprimir com proibições descabidas. Eram informados que os responsáveis eram premiados, os irresponsáveis convidados a se mudarem de ambiente. O que mais impressionava nela era a efervescência. Com grande número de alunos e vários cursos sendo ministrados ao mesmo tempo, havia um continuo bulício. Gatos e gatas podiam aliar o prazer de estudar com o de flertar. Ele, mais de uma vez tinha matado aula, em sua escola anterior, para ir dar uma espiadinha nesse paraíso. Certa ocasião conseguiu iludir a vigilância do porteiro, entrando, em pleno recreio, no recinto que tanto desejava olhando pelas grades do portão. Depois de tanto implorar, finalmente chegara o dia. Na noite da véspera, volta e meia acordava e consultava o relógio para verificar se estava na hora de acordar. Com profundas olheiras, pela noite mal dormida, e com uma ansiedade que lhe provocava incômodos suores nas mãos, equipado com bela e nova mochila e envergando o novo uniforme, feliz da vida, marchou contente para seu 1? dia do ano letivo.

A primeira aula foi de português. A professora, para surpresa sua, não perdeu muito tempo com apresentação e foi logo passando a 1ª tarefa.

Não conheço um bom número de vocês. Preciso fazer uma avaliação para ter idéia de como estão. Costumo passar muitas avaliações por bimestre. Hoje, nosso primeiro dia de aula, será também de nossa primeira avaliação. Tirem uma folha do caderno, coloquem nome, classe e data. Vocês irão elaborar uma redação. O tema é livre. Cada um escreva sobre o que achar melhor.

Pego totalmente de surpresa, ficou como que apalermado. E agora, que título irei colocar? Nesse divagar perdeu preciosos minutos. Não atinava com nenhum assunto. Tentou recordar-se de algum tema razoável. Tentou reproduzir, numa rápida visão, as palavras de seu dicionário, quase nunca consultado, em vão. Cada título que, após ingentes esforços, aparecia-lhe na mente, nada, além dele, brotava.

Afirmam que a língua portuguesa é rica em vocábulos. Todos os que conseguia rememorar, enfileirados qual exército monolítico, vendavam-lhe o caminho. Atirou-se contra eles. Tentou capturar os velhos conhecidos, escapuliam-lhes. Assenhorear-se de uma centena de palavras e forçá-las a dizer alguma coisa com sentido, era do que necessitava. Sua fronte latejava. Das mãos, não sabia por que acontecia isso com ele, escorria-lhe um suor frio que manchava a folha em branco. Um imenso vazio o engolfava.

Qual náufrago sem horizonte, não conseguia escolher um rumo. Não podia fracassar. Ele, recebido com festas pelos colegas e curiosidade pelas meninas, que não o conheciam, tinha de se destacar de qualquer modo, perante a classe. O tempo estava se esgotando. Súbito, veio-lhe uma inspiração insólita. Passou a mão na caneta, substituiu a folha pautada por uma de sulfite e lascou: - “O tempo passa/ a ciência manca / Inda esvoaça/ bandeira branca!”

Seu “trabalho” foi lido na aula seguinte. Em tempos de construtivismo, foi aplaudido como emérito construtor de versos concisos, esclarecedores e, sobretudo sinceros. Foi seu batismo. Com aura de sabichão viu-se na obrigação de estudar redobrado para não deixar a peteca cair. Não pode mais dar bandeira e acabou descobrindo que estudando se aprende e que se arriscar as vezes dá.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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