Cecílio Elias Netto: ‘Jornalismo é o mergulho no cotidiano de uma comunidade’

Por edicao_jp |
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Piracicabano ilustre e um escritor dedicado ao amor por Piracicaba, aos 80 anos Cecílio Elias Netto é o jornalista mais antigo em atividade na cidade, com 65 anos de profissão. Desde menino, o sonho era ser escritor, seguindo os passos de Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, Jorge Amado e Érico Veríssimo. Com 55 anos de literatura, lançou, neste mês, “Rua do Porto – Pia Batismal de um Povo”. Uma publicação do Icen (Instituto Cecílio Elias Netto), a obra tem a coordenação editorial da B2 Comunicação. O projeto foi viabilizado pelo apoio cultural de Oji Papéis Especiais, Cosan e Unimed Piracicaba, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.


Cecílio iniciou a carreira como jornalista aos 16 anos, como auxiliar de revisão no Jornal de Piracicaba, onde hoje colabora como cronista. Mas também passou por diversos outros matutinos e semanários da cidade e região, como O Diário, A Tribuna, Correio Popular, O Correio, Piracema, A Província e Folha de Piracicaba, de onde foi proprietário aos 23 anos, sendo sua grande experiência jornalística. Em Folha de Piracicaba, desafiou o golpe civil-militar de 1964, que lhe culminou em inúmeros processos, sendo o primeiro deles pela Lei de Segurança Nacional, detenções e uma prisão domiciliar por mais de ano.


Com sua visão única sobre o mundo e Piracicaba, o Persona de hoje é pai da Patrícia, Carol, Marcelo, Rachel e Carina e avó do Rafael, Leonardo, Mariana, Henrique, Clara, Tanan e Laio.

Vamos voltar no tempo um pouco: como foi sua infância na Piracicaba da década de 40?

É incrível para mim mesmo, mas, hoje, posso dizer que a infância me acompanha. Sou marcado por ela, sinto isso. Nasci ao fragor da II Guerra Mundial e as minhas primeiras lembranças – sei que dos três, quatro anos de idade – estão marcadas pelo medo dos adultos face às notícias da tragédia mundial. Havia falta de quase tudo, especialmente, falta de pão. E isso me machucava. No entanto, a carência era superada pela convivência amorosa de minha família, meus pais sendo, naquele mundo horrível, verdadeiros criadores de histórias, tornando mágico cada dia de nossas vidas. Os quintais, os brinquedos de madeira, os terrenos baldios para se jogar bola, a beleza de ser menino de rua que se assumia como dono do mundo… Lembro-me do terror antecipado à notícia da bomba atômica sobre Nazagáki. Sabia-se do que ocorrera em Hiroshima e, por isso, Nagazáki era o anúncio do fim do mundo. Está viva, em mim, a imagem que parece ter-me mostrado a fantástica complexidade do mundo: à hora prevista do lançamento da bomba, eu via casais alegremente postados para ir ao cinema, Cine Broadway, felizes como se nada viesse a acontecer. Acho que, ali, entendi o sentido profundo de sobreviver.

Quais profissões o senhor escolheu e por quê?

Eu é que lhe faço a pergunta: será que escolhemos a profissão ou é ela que nos escolhe? Só sei que, desde a minha infância, sonhei em ser escritor, em contar histórias por escrito, em inventar dramas, amores, tragédias. O meu primeiro romance – se assim pode ser chamado – foi aos 15 anos, com o título “Uma luz, por favor”. Eu lia alucinadamente em busca de ter um estilo próprio, de onde me veio o medo, verdadeiro pavor, de poder plagiar alguém. O jornalismo me atraiu como um passo para aprender a escrever, pois jornais eram escolas literárias. Passei a dar aulas particulares (português, francês, latim), lecionei, estudei Direito, advoguei, assumi o jornalismo, tive jornais, ingressei em outras faculdades (Economia, Filosofia), fiz cursos de extensão (UNB) – tudo em busca de um objetivo que não alcancei: ingressar na diplomacia. E tentar ser diplomata para, então, ter condições de realizar meu sonho maior, não sei se único: escrever. Almejei seguir os rastros de Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, diplomatas. No Brasil, sonhar sempre foi possível, não? Sonhar, sonhei. Posso dizer que, na vida, todo o meu trabalho visou a esse objetivo vital para mim: escrever. (Escrevi até em areia de praia).

Qual é o sentimento de ser o mais antigo jornalista em atividade na cidade?

De rendição de graças. Um dos nossos bispos, o saudoso Eduardo Koaik – de quem tive o privilégio de ser amigo – dizia-me: “Deus o persegue”. Com humildade, passei a acreditar nisso. E estar ainda em atividade, nos meus 80 anos – com 65 de jornalismo, 55 de literatura – vejo-o como uma graça recebida. Tivesse mais coragem e audácia, atrever-me-ia a repetir como São Paulo: “Não sou eu que vivo, é Deus que vive em mim.”

Várias de suas obras abordam nossa querida cidade. O que Piracicaba significa para o senhor?

Se, desde criança, sonhei em ser escritor, o meu desejo maior sempre foi o de ser escritor em minha terra, de minha cidade. Consigo entender o mundo em sua globalidade, mas o meu mundo real, verdadeiro, concreto é Piracicaba. Ninguém mora num mundo abstrato, teórico. Fiz de Piracicaba o meu mundo e é ela que eu canto e que os meus personagens literários também cantaram. Propostas e ofertas, eu as tive para produzir fora de Piracicaba. Cheguei, até mesmo, a aceitar uma delas por alguns poucos anos. Mas não me foi possível. Fora daqui, longe de Piracicaba, eu perco a identidade. Piracicaba é meu berço, minha pia batismal, meu crisma, meu sacerdócio, meus matrimônios, meus amores e desamores. E espero seja a terra do meu último repouso.

Seu mais novo livro “Rua do Porto – Pia Batismal de um Povo” é uma homenagem a esse lugar único de Piracicaba? Por que escolheu contar sobre esse local?

Não, não vejo como homenagem. Sinto ser um preito de gratidão, uma eucaristia. A Rua do Porto é, sim, nossa pia batismal, o berço, as origens. Lembro-me, com muita emoção, de meu pai dizer-me que enterrara o meu umbigo à margem do rio, na Rua do Porto. Ele me levava para lá já aos meus três, quatro anos de idade, diretor e atleta que foi do grande Clube de Regatas. E eu me vejo, ainda agora, cutucando a margem do rio procurando o meu umbigo. Vejo meu pai ajudando Nhô Lica a escolher pedras na beira das águas, acreditando fossem pedras preciosas. Eu, também, queria ajudar, mas Nhô Lica sempre rechaçou as pedrinhas que eu lhe dava. Na Rua do Porto, estão minhas raízes.

Como escolheu contar essa história?

Sonhando em ser escritor, eu tinha como modelo Jorge Amado e Érico Veríssimo, que cantavam a Bahia e o Rio Grande do Sul. Meu desejo era cantar Piracicaba, a partir da Rua do Porto, um grande romance da Rua do Porto, com seus pescadores, suas mulheres, as inundações, a história dos nossos pioneiros, as mentiras contadas com varas nas mão, seus moradores, Bico Fino, Leo Trovão, Maria Pituça, os Pecorari, a Arapuca de tantos encontros clandestinos, de confabulações políticas. Adiei esse projeto por muitos anos, acho que com medo de não conseguir transmitir tudo o que eu sentia. A pandemia, no entanto, trouxe-me a realidade do tempo: “tempus fugit”. E, então, escrevi. Não é o romance que imaginei. Acho, no entanto, ser, pelo menos, uma declaração de amor àquela nossa pia batismal. Já escrevi e repito: a Rua do Porto é, ao mesmo tempo, a mãe que acolhe a todos e a meretriz que se entrega a cada um.

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Voltando agora para o jornalismo. Como o senhor avalia o papel do jornalismo nessa época das diversas telas e marcada pela desinformação (as chamadas ‘fakenews’)?

Jornalismo é atentar para o giorno, a giornata, le journée, le jour. Portanto, é ação e atividade inerente ao ser humano, a seu cotidiano. Para mim, fazer jornalismo, ainda agora, é esse mergulho no cotidiano de uma comunidade, sendo aquilo que, certa vez, o meu queridíssimo Bispo Aníger Melilo – verdadeiramente meu pai espiritual – me falou e cobrou: “é ser cão de guarda da sociedade.” E acrescentou: “ai do cão de guarda que não ladrar diante de perigos e ameaças.” Penso, ao contrário de muitos incrédulos, que, na História, poucas vezes houve essa necessidade que digo pungente de haver jornalismo sério, comprometido, responsável. Com esse maremoto de aventuras, de oportunismos, de informações falsas e oportunistas, a sociedade precisa de referenciais confiáveis em que confiar em sua sagrada busca pela informação. Em meu entender, não há mais necessidade de os jornais serem noticiosos, pois a notícia tem as suas mais diversas e rápidas fontes. No entanto, serão os jornais e jornalistas sérios e competentes os que se tornaram responsáveis – digo que verdadeira missão – de interpretar, de analisar, de considerar os fatos e acontecimentos. Vejo um jornalismo investigativo, cada vez mais independente, jornalismo de oposição não a pessoas, partidos políticos ou ideologias – mas a tudo o que seja apresentado como verdade estabelecida.

Estamos vivendo um momento histórico. Em que o senhor tem refletido? Acredita que sairemos mais ‘humanos’ desse momento?

Faço-lhe um confiteor, num momento em que já celebro minhas cerimônias de adeus ainda que deseje fazê-lo por mais um bom tempo. Sim, tenho refletido muito. Lendo e estudando muito. E vejo-me, ainda, na encruzilhada, lembrando que encruzilhada é o lugar e o momento de expectativa, de espera, de escolha. Iremos para a direita ou para a esquerda, para a frente ou damos passos para trás? Há momentos em que me entusiasmo antevendo um mundo novo mais decente. Em outros – quando percebo, como agora, o oportunismo, a cobiça de nações e de líderes poderosos – sinto desânimo. Não consigo mais acreditar em solução global. No entanto, creio, cada vez mais, em reorganização social, comunitária, grupal. Assistimos, felizmente, à lenta morte do individualismo egoístico. Isso implica, em meu entender, a revalorização do bairro, da comunidade, da família, do quarteirão. E, para isso, não há outro caminho senão o de darmos alguns passos para trás e recuperar valores perdidos ou esquecidos.

O que podemos esperar da mente e escrita de Cecílio Elias Netto nos próximos anos?

Tenho repetido a familiares e amigos aquela frase do Zagalo aos que achavam ter, ele, esgotado seu tempo: “Vocês vão ter que me aguentar!” Por mim, não paro, mesmo porque não consigo fazê-lo, tanto, ainda, sinto a vida agitar-se em mim. Se superei tantos problemas de saúde, deve haver algum compromisso que ainda não cumpri. Meus ancestrais árabes acreditavam no “Maktub”, o estar escrito nas estrelas. Se assim for, devo, apenas, aceitar essa escritura. Quero continuar no jornalismo, pensando, até mesmo, em ser mais participativo. E já estou, sim, em processo de gestação de dois outros livros: “Guia amoroso da terra” e um romance ambicioso, “Rua dos Ferroviários, Casa Número 10”. É um projeto, no qual minha alma parece ter mergulhado com uma tal liberdade que me era desconhecida. Penso, também e talvez, em produzir um blog, para, com mais rapidez, meter o nariz de jornalista nessas farsas que nos têm sido propostas.


Enquanto isso, vou alimentando-me da música, do silêncio, do encantamento de fazer meu jardim. E de sentir-me vivo ao ritmo de tudo o que vive. E, então, o tempo cronológico deixa de existir, ficando a formidável sensação de eternidade, de não haver começo nem fim. E, portanto, de não ter nascido, de não vir a morrer. Uma certeza deveria alimentar-nos: não se nasce para sentir-se desterrado ou punido num “vale de lágrimas”. Viemos ao mundo como cuidadores, em busca do paraíso perdido. Que existe em cada um de nós. Creio nisso.

Andressa Mota
andressa.mota@jpjornal.com.br

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