A ‘bíblia’ gay do Brasil

Por Rubinho Vitti | 22/06/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Junho é considerado em todo mundo o mês do orgulho e da visibilidade LGBTQI+. Não sabe o que é esse emaranhado de letrinhas? Vamos lá: Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexuais e mais (assexuais, pan, poli, etc). Ou seja, tudo o que não se encaixa na heteronormatividade.

Por coincidência, neste mês terminei de ler Devassos no Paraíso - a Homossexualidade no Brasil, da Colônia à Atualidade, de José Silvério Trevisan. O autor pesquisou por quatro anos o tema para escrever o livro, originalmente publicado em 1986, mas uma novíssima edição revisada e atualizada foi lançada há dois anos.

É a “bíblia” gay brasileira. Na primeira parte do livro, que podemos chamar de “velho testamento”, ele narra aventuras sexuais de 500 anos atrás em uma terra recém-explorada.

Nas pesquisas, há escritos de antigos navegadores que mostram as atividades homoafetivas já entre índios. A primeira história de homofobia, por exemplo, aconteceu no Maranhão, em 1613, com a morte do índio Tibira (nome que significa afeminado). Ele foi caçado, amarrado na boca de um canhão e partido ao meio por ordem de um missionário francês que queria “salvar sua alma”.

Nos diários de bordo europeus, não faltam histórias no paraíso pagão chamado Brasil. Algumas divertidíssimas, explicitando detalhes dos atos sexuais, algo que fez o livro ser proibido por muitos anos.

A colônia era uma febre e satisfazia os desejos proibidos no Velho Continente. Ao mesmo tempo, a igreja católica atuava como inquisidora, prendendo e matando quem praticasse a temida “sodomia”. É a origem de um Brasil pudico e violento -- país que mais mata homossexuais no mundo -- onde, ao mesmo tempo, tudo pode durante o Carnaval.

Silvério traça todo o histórico dos LGBTs, década a década, passando pelos movimentos de libertação sexual dos anos 60 e 70, até chegar aos 1980. A partir daí, considero que o livro ganha ares de “novo testamento”, com Silvério sendo autor e personagem.

Há 40 anos, os primeiros grupos de defesa dos direitos homossexuais começaram aparecer ao mesmo tempo que também surgia o HIV. O livro mostra o medo da comunidade, a tristeza de quem perdeu amores e amigos e o enfraquecimento dos movimentos. O livro não poupa detalhes cruéis de como a sociedade brasileira tratou do assunto e a ignorância das autoridades, o que só fez aumentar o número de casos e desinformar. Soou familiar para você?

O livro ultrapassa os anos 2000, quando, ao mesmo tempo que a pauta LGBTQ ganha destaque, a política não a acompanha com o mesmo ritmo. Por conta de toma lá, dá cá, algo que ainda estava enfraquecido no início daquele século se fortaleceu: a bancada evangélica. Enfurecida e obcecada, ameaçava votar contra outras pautas governamentais se o Executivo favorecesse os LGBTs.

Isso fica claro com a criação de uma cartilha educativa sobre a diversidade sexual nas escolas, que foi distorcida e chamada de “kit gay”, algo que você provavelmente já ouviu falar. Por pressão da bancada, a então presidente Dilma Rousseff vetou a ideia sugerida pelo seu próprio Ministério da Educação. E a gente sabe onde essa história foi parar.

Apesar da frustração, a comunidade LGBTQI+ sempre foi resistência e o livro faz questão de mostrar sua força. O cinema, o teatro, a literatura, a música, as novas lideranças. A década de 2010 chegou e a comunidade ganhou ainda mais espaço, aberto com um chute de salto alto e muito glitter.

Silvério, aos 76 anos, está mais antenado do que nunca. Sua avaliação da nova geração é feita com muito conhecimento e mostra que, para resistir e lutar, não existe idade. A motivação do autor é mais que clara: ver a população LGBTQI+ livre e cheia de amor neste paraíso tupiniquim, cada vez mais repleto de maravilhosos devassos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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