Kelma Jucá

O abraço de Portinari

Por Kelma Jucá, Jornalista | 03/06/2022 | Tempo de leitura: 4 min

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Eu caminhava não muito distraída quando um grupo de mulheres me chamou atenção. Meu foco se voltou especialmente para duas delas. Uma estava de braços levantados como quem pede ajuda. A outra me parecia largada por um cansaço que deveria acompanhá-la há anos. Fiquei vidrada nelas. Depois observei uma terceira mulher que aparentava curtir o afago que uma leve brisa lhe fazia no rosto – como se num sopro de esperança, a vida pudesse se tornar mais fácil do que jamais fora. Eram todas mulheres pretas. Ao observar a cena, me mantive estática sei lá por quanto tempo até a cair num choro calado. Arrebatada pela emoção, fui checar quem era o autor da pintura. Com uma letra legível e longitudinal, lá estava: Portinari.

Era a primeira vez que eu visitava uma galeria de arte. E isso faz um mês! Ao me dar conta de que me emocionara com um dos maiores pintores do modernismo do país, admito que veio uma sensação de orgulho como quem numa autorreflexão se compreende sensível e capaz de reconhecer uma verdadeira obra de arte. Entretanto, num lapso de rápida suspeita e ainda com olhos embebidos de lágrimas, balbuciei ao meu amigo e guia da galeria: “É um Portinari?”. À confirmação dele, tive a constatação sui generis de que eu estava exatamente onde deveria estar. Eu era a pessoa certa no lugar certo, olhando para uma pintura que havia me chamado.

Talvez no afã de me impressionar, ainda mais, Gustavo acrescentou: “É uns 15 ‘milha’”. Incrédula com o valor, fiz um rápido cálculo mental e concluí que dava para eu vender o carro, comprar um Portinari e depois me virar com outro veículo mais simples que atendesse às minhas necessidades básicas. “É quinze mil?”, questionei com alguma ansiedade para me certificar do meu poder de compra. Um tanto irrequieto, Gustavo me respondeu o que só agora me pareceria óbvio: “Não. Quinze milhões!”.

Confesso que mais triste por minha conta bancária não suprir o meu objeto de desejo do que envergonhada por não ter noção de valores, me afastei da obra temporariamente. Se existe uma atração natural entre algumas pessoas, acredito que possa ocorrer o mesmo com a arte. Aquela pintura chamou por mim tão logo eu entrei naquela enorme sala de paredes brancas, tomadas por um sem número de quadros de importância vultosa.

Cabisbaixa, enquanto me recuperava da carestia de tudo nessa vida, quase como uma criança quando é repreendida pela mãe por querer levar para casa o brinquedo que não cabe no orçamento, vislumbrei um quadro de alta estatura. Estava no chão, só encostado na parede. De longe, vi a assinatura. Achei estranho e pensei que poderia ser uma irmã ou parente mais afastada de outro grande pintor. Fiz uma breve consulta no Google e estupefata, perguntei como quem fala: “Di Cavalcanti assinava Edi Cavalcanti?”. Com a confirmação de Gustavo, soltei admirada: “Di Ca-val-can-ti as-si-na-va E-di Ca-val-can-ti”.

Andar por grandes obras de arte, no privilégio de estar entre amigos e no sossego de um espaço com a privacidade para apreciar cada traço e emoção pincelada pelo artista é um apanágio para a alma. Eu me senti acolhida por tanta poesia em cores, tons e dramaticidade. Foi isso. Portinari me abraçou. Eu era apenas uma menina em meio a tantas atrações de sofisticada qualidade. Cândido Portinari me compreendeu em 1939 quando pintou o quadro “Seca”. E foi em 1º de maio de 2022 que eu ouvi o seu chamado anacrônico numa galeria em São Paulo. É isso o que a arte faz. Aprendi o seu real sentido. Ela conecta, inspira e emociona. E não é que seja cara, é valiosa.

Pode até parecer um despropósito, mas assim como acontece com algumas pessoas cujo carisma e energia não podem ser medidos numa foto, a “minha” pintura de Portinari – e eu nem tive de gastar 15 ‘milha’! – é muito mais bonita pessoalmente. E ela é “minha” por que ele fez para mim. Eu, que sou uma nordestina do Ceará, carrego nas veias a história de luta do sertanejo que sobreviveu aos castigos da falta de água. Eu mesma não sofri com as parcas chuvas da minha Terra. A minha ascendência até a geração dos meus pais, sim. Eu nunca havia pensado sobre isso. Se pensei, esqueci. Num abraço, Portinari me lembrou de quem eu sou.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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