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Ciro Biderman, professor da FGV, pontua escolhas e ações que podem mudar o futuro de São José

Por Paula Maria Prado |
| Tempo de leitura: 6 min
Ciro Biderman
Ciro Biderman

OVALE conversou com Ciro Biderman, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), pesquisador do departamento de estudos urbanos e planejamento do MiT (instituto de Tecnologia de Massachusetts) e consultor de curto prazo para o Banco Mundial na economia e política do desenvolvimento local. Ele pontuou o que tem sido feito em cidades do mundo, mudanças possíveis nos municípios e revelou projetos que estão sendo desenvolvidos em São José dos Campos e que podem mudar todo o futuro da cidade. Veja:

1 - O que podemos chamar de cidade inteligente?

O termo foi cunhado por um grupo de empresas liderado pela IBM, que acreditava que, com a adição de sensores que fornecessem informações em tempo real sobre as condições de tráfego, alertas de segurança, imagens e etc e utilizando técnicas de “big data” e aprendizado de máquina seria possível fazer com que a cidade conseguisse fornecer serviços melhores sem aumentos nos gastos. Mas, na prática esse se tornou um jargão para vender produtos tecnológicos (não necessariamente inovação) sem efeitos substantivos sobre a qualidade de vida da população.

2 - Existe uma cidade no mundo que podemos nos mirar como ideal?

Acho que há cidades bem organizadas que têm usado a tecnologia a favor da população, como Cingapura, Londres, Copenhagen, Portland (Oregon). Mas eu não diria que devemos “mirar” nas mesmas pois os avanços obtidos por elas têm muito a ver com sua capacidade de alterar o modelo de governança estabelecido.

3 - No ranking da Urban System, São José aparece em 30º lugar. Como avalia?

São José certamente tem um DNA para inovar, dado o DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial), ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e Parque Tecnológico, entre outros. Adicionalmente, tem um prefeito comprometido de verdade com a inovação. Todos esses elementos têm colaborado para que a cidade esteja entre as mais inovadoras do país. Adicionalmente a cidade deve ter, em termos relativos à população, uma das maiores malhas de fibra óptica do país, diversos “hubs” de inovação, enfim, uma vocação para ser de fato inovativa.

A FGV (Fundação Getúlio Vargas) tem atualmente uma parceria com a cidade para inovar no transporte público e acredito que esse será um passo relevante para se chegar a uma cidade inteligente de fato (não mercadologicamente). O modelo que estamos propondo é único no mundo ainda que parta de diversas ideias inovadoras, evidentemente. Não se trata de reinventar a roda. O que estamos propondo, se bem sucedido, permitiria uma integração completa entre todos os modos de transporte (bicicleta, caminhada, automóveis, ônibus, motocicletas, patinetes).

Hoje em dia as viagens quase sempre combinam caminhada com outro modo. Mas mesmo essa combinação não se pode considerar como integrada pois os dois trechos da viagem ocorrem de maneira isolada. Em uma situação extrema, como a que passamos com o Covid-19, fica claro que a falta de flexibilidade pode ser fatal para os serviços de mobilidade. O surgimento dos aplicativos e a possibilidade de se compartilhar um veículo mostraram que pode ser melhor, em alguns casos, usar veículos menores. Esse avanço dos aplicativos permaneceu no setor privado com poucos ganhos para a sociedade. Nesse novo modelo de gestão da mobilidade em São José dos Campos a cidade pretende aproveitar esses ganhos para melhorar a vida da população.

O modelo vai permitir que um ônibus seja “chamado” por um aplicativo (o chamado “ônibus sob demanda”) reduzindo o tempo de espera e melhorando a eficiência do sistema. Vai permitir que o usuário, a partir de qualquer aplicativo de transporte, possa montar uma viagem completa iniciando, digamos, com uma bicicleta compartilhada, transferindo para um ônibus e terminando a última ‘perna’ com um transporte por aplicativo (por exemplo). Nenhuma cidade do mundo chegou em tal integração que seja do meu conhecimento.

4 - Quais são os pontos cruciais que toda cidade tem que ter em mente para atingir essa inteligência?

O principal ponto é mudar a forma como se compra tecnologia e como se contrata e se capacita os agentes públicos. Evidentemente esses dois aspectos chave não dependem apenas das cidades, mas de legislação federal. Mas, dentro da alçada do município, é possível efetivamente inovar com as regras atuais apenas utilizando as ferramentas disponíveis para o município. Já existe legislação que permite a contratação de inovação de maneira muito mais moderna (chamada de “encomenda”) onde o poder público se torna co-proprietário dos avanços realizados e, portanto, pode se beneficiar de fato dos mesmos em vez de “deixar” todos os ganhos para as empresas privadas.

Mas esse mecanismo é pouco utilizado. É possível realizar concursos de projetos e contratar micro e pequenas empresas, que são os motores da inovação, para entregar tecnologia aberta e efetivamente inovadora. Outro ponto crucial é utilizar dados e protocolos abertos respeitando o direito de privacidade dos indivíduos, evidentemente. As maiores empresas de tecnologia do mundo atualmente (Google, Facebook e etc.) vivem dos dados que obtém dos seus usuários e o governo não consegue utilizar essa revolução que ocorreu em big data e aprendizado de máquina para melhorar seus serviços.

O ponto crucial é alterar o que chamamos de “governança” para direcioná- -la para a inovação de fato e não para a compra de tecnologia sem um fim claro para o benefício da sociedade. O que observamos de significativo nas cidades ocorreu em mobilidade. Em outra área de interesse da minha agenda de pesquisa, segurança pública, as promessas de linguagem de máquina ou do uso de big data até o momento não têm apresentado retorno significativo. Nos casos em que se avaliou de verdade os ganhos associados ao uso de inteligência artificial no combate ao crime, se observou um efeito insignificante desses avanços.

Mas pode ser uma questão de tempo e que venhamos a observar avanços nessa área no futuro. Grande parte dos sensores que eu comentei anteriormente se dedicaram ao monitoramento do crime. Na minha outra área de expertise, habitação, creio que praticamente não houve nem tentativas de inovação substantiva. Curiosamente praticamente não se observam esforços dos governos ou do setor privado para alterar o modelo de oferta de habitação mas, sendo otimista, pode também ser uma questão de tempo.

5 - Como a sociedade pode ajudar a fazer com que essa cidade seja inteligente?

A sociedade tem um papel fundamental. É a sociedade que deve escolher governantes comprometidos com a inovação, por exemplo. Em geral a sociedade é bastante refratária às mudanças. O ser humano tem medo do novo pois não sabe se pode piorar a sua situação. Por exemplo, uma mudança nas linhas de ônibus é tipicamente mal recebida pelos cidadãos. Mesmo que essa mudança melhore um pouco a vida de uma parcela grande da população, a pequena parcela que se viu prejudicada é a que vai se mobilizar contra a mudança. A sociedade teria que estar disposta a mudar para que as cidades de fato caminhem para ser inteligentes no sentido verdadeiro do termo: conseguir avanços significativos nos serviços públicos sem necessitar aumentar a arrecadação. 

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