A Cia Griot, na presença Silvia Nery e Denilson de Paula, trouxeram para o Festivale o espetáculo A lenda do Guapuruvu: uma contação de história advinda do repertório oral dos tupis e tupinambás da região do Vale do Paraíba e do Litoral Norte de São Paulo. Guapuruvu é o nome de uma árvore - também conhecida como faveira ou pau-de-vintém - que marca presença nessa região e cuja etimologia deriva do tupi-guarani, em que yna ou ignara é canoa, e p'vú significa tronco. Assim entende-se o seu sentido como "tronco de fazer canoa", como é apresentado no espetáculo, um tronco com madeira leve e boa para flutuar nos rios.
Recorri, na minha memória, às "Primeiras Estórias", de Guimarães Rosa, para trazer essa imagem da canoa como uma árvore deitada que flutua. E assim, embarquei na lenda ancestral indígena apresentada, na qual Guapuruvu é, a princípio, um bravo guerreiro que conjuga gentileza e amabilidade com coragem e fortaleza. Através do corpo, texto e cantigas autorais, a Cia Griot reiterou a pesquisa de linguagem e de sonoridade que vem desenvolvendo, costurando a narrativa que nos mostra como Guapuruvu metamorfoseou-se de guerreiro à árvore, pelo seu amor à mãe do ouro e ao seu povo.
Os ritmos e gêneros musicais escolhidos, vem da experiência dos integrantes do grupo, não necessariamente por uma ligação ao legado musical indígena da origem da lenda, passando por claves como a de tambor de crioula, cacuriá e coco. Isso não me parece de modo algum uma questão, porque acredito que toda encruzilhada musical que nos forma como povo brasileiro, do modo que é apresentado no espetáculo, pode ser utilizada como ferramenta sonora discursiva para contar nossas histórias - tendo ou não a ver com a origem estrita da lenda. Não cabe purismo ao hibridismo que somos, contanto que não anule as partes que nos somam. A pesquisa de sonoridade do espetáculo, além das conduções rítmicas citadas, é composta por várias camadas de texturas e efeitos que também contam a história, nos adentrando nas matas, noites e rios. As toadas e cantigas intercalam bem com o texto, criando dinâmicas, bem como o trabalho de corpo e seu diálogo com o figurino - assinado por Dagmar Siqueira.
Todos estes elementos cênicos compõem textualidades da oralidade, que para além da palavra - dentro, inclusive, da cultura griot - transmitem, criam e recriam narrativas. Dentro do apagamento de memórias que temos vivido nesse Pau Brasil do século XXI, considero de extrema importância a perpetuação de trabalhos que apresentem e representem o nosso acervo popular marginalizado, invisibilizado, incendiado e dizimado, como ferramenta de resistência - inclusive dramatúrgica. Com sementes de Guapuruvu, que possamos selar o nosso compromisso com essa militância. Que o ouro, ao invés de cegar os que já não querem ver, sejam símbolos de luz e sabedoria da terra - como nos disse a mãe de ouro da lenda - nos dando clareza para seguir os caminhos de uma relação respeitosa com a natureza, que já não nos aguenta mais. E porque não posso deixar de falar nisso, que sejam homologadas as demarcações de terras indígenas travadas por esse projeto político genocida que está no poder. Está tudo ligado, Guapuruvu é a árvore do lembramento de todas essas questões.